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Raízes – a mulher nas religiões de matriz africana

Da tradição oral à militância, as mulheres negras se fortalecem por meio de sua religiosidade

Reportagem Selecionada — Projeto Tirando da Gaveta da Anú

 

Quando os primeiros negros africanos foram trazidos forçadamente para o Brasil, ainda na primeira metade do século XVI, trouxeram da terra de onde os tiraram um enorme patrimônio cultural. Costumes, valores, idiomas e dialetos, conhecimentos e crenças. Aqui foram obrigados a adaptar sua cultura à dos invasores europeus que os raptaram, tiveram que aprender o idioma da colônia e foram proibidos de praticar suas religiões. Por esse motivo, as religiões africanas passaram por modificações e transformações ao chegarem aqui, mas são um dos aspectos que se mantiveram da cultura negra-africana.

 

Apesar das proibições, eles continuaram praticando seus rituais religiosos de forma secreta e nem mesmo um processo tão sofrido quanto a escravidão fez com que a cultura negra-africana se apagasse totalmente. Ao contrário, aqui eles foram reconfigurando seus aspectos culturais, ora por influência dos europeus, ora para poder manter aspectos da sua cultura salvos das proibições dos escravizadores. Esse processo deu origem ao que hoje são as chamadas religiões de matriz africana, que têm nas religiões tradicionais africanas suas bases teológicas.

 

Desde então, essas religiões têm sido transmitidas de geração em geração através da oralidade. Mônica Martins, praticante de Umbanda há 8 anos, destaca a importância da tradição oral dentro dessas religiões:

 

“E o lance de oralidade mesmo, é de tu repassar a vivência, de tu sentar e conversar, de contar as histórias. (…) Os filhos sempre vão ouvir o bem maior da casa, quem tem mais experiência, quem tem mais vivência. Esse lance de oralidade é bem importante mesmo pra quem está chegando e às vezes não entende muita coisa”.

 

Atualmente, 13 religiões afro-brasileiras são praticadas na grande Porto Alegre. Umbanda e Batuque são as religiões de matriz africana com maior número de terreiros na região metropolitana da capital gaúcha, de acordo com dados do mapeamento dos terreiros das regiões metropolitanas de Porto Alegre, Belém, Belo Horizonte e Recife, realizado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) em parceria com a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e UNESCO, em 2010. Além disso, de acordo com o último Censo do IBGE, o Rio Grande do Sul tem a maior proporção nacional de praticantes de Umbanda e Candomblé.

 

Mesmo assim, a Ialorixá Winnie Bueno relata que o preconceito com as religiões afro-brasileiras ainda é grande: “Quando eu saio com as minhas contas, já é o suficiente para estar alvo de alguma situação de violência. Pra além de ser mulher, pra além de ser negra, o fato de ser ialorixá também me coloca com mais força no mundo, com certeza, mas também me coloca em situações de vulnerabilidade social mais aprofundadas”.

 

As religiões africanas têm sido transmitidas de geração em geração através da oralidade

 

 

 

 

Para além de ser mulher

 

Além da indumentária tradicional, o lugar das mulheres nas religiões de matriz africana também pode ser algo desconhecido para os não praticantes, especialmente em um país majoritariamente católico, como apontou o Censo de 2010 do IBGE, e acostumado a ver homens ocupando os lugares mais importantes nas igrejas.

 

Nas religiões afro-brasileiras as mulheres ocupam lugares de liderança e estão no comando de diversos centros religiosos. Miriam Estabel, praticante de Batuque e Umbanda há mais de 50 anos, atribui esse lugar de destaque a fatores históricos: “A religião de matriz africana no Brasil, em relação às demais religiões, é onde as mulheres têm um papel de destaque e isso vem lá do período pós escravidão. As mulheres acabaram sendo alforriadas antes dos homens e, como elas já traziam o conhecimento, um vínculo com a religião, as primeiras casas que surgiram no Brasil foram conduzidas por mulheres e, ainda hoje, a maioria das casas de religião são conduzidas por mulheres”.

 

A posição de liderança das mulheres dentro dos terreiros pode ser elencada como um dos fatores que têm feito dessas casas lugares onde muitas mulheres buscam acolhimento físico e espiritual.

 

É o que percebe Sandrali Bueno, praticante de Batuque há 47 anos: “atualmente, eu tenho percebido uma procura maior por mulheres na nossa casa. A medida que a gente começa a sair para fora do terreiro, e nos colocamos nesse mundo social fora do terreiro e começamos a falar sobre, como ele funciona, parece que tem esse efeito das mulheres procurarem mais”.

 

Além disso, através da religiosidade, muitas mulheres têm descoberto a militância política seja como praticantes de religiões de matriz africana, na militância contra o preconceito e a intolerância religiosa, seja como mulheres negras, lutando contra o machismo e o racismo quotidianos.

 

Para Nina Fola, praticante de Batuque e Umbanda e presidenta da OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) Africanamente, a religiosidade e a militância andam juntas: “Parece que tu tem que sentir em algum momento, pensar em outro momento, e na verdade a gente é sempre inteiro, a gente está sempre sentindo, pensando nossas subjetividades. E acho que o mundo ocidental separa militância como racionalidade e religiosidade como algo das subjetividades. Só que na hora da aplicação da lei, na hora da elaboração de políticas públicas, isso não acontece, isso é falácia”.

 

Através da religiosidade, muitas mulheres descobrem a militância política

 

 

 

Axé em dados

 

Batuque e Umbanda são as duas religiões com maior número de terreiros na região metropolitana de Porto Alegre. As diferenças entre elas começam pela origem de cada uma. O Batuque é original do Rio Grande do Sul e se originou a partir das religiões dos povos da costa da Guiné e da Nigéria. Já a Umbanda sincretiza 

Fonte: Mapeamento de terreiros (MDS, SEPPIR e UNESCO) e Censo 2010 (IBGE)

elementos de outras religiões afro-brasileiras e também religiões não africanas, como o catolicismo, o espiritismo e a religiosidade indígena.

 

Liderança

 

Quando analisada a história tradicional do mundo, – aquela escrita em sua maioria por historiadores homens e europeus – , ela se mostra masculina, as mulheres e suas realizações foram silenciadas.

 

Na atualidade, ao nomear presidentes, diretores de grandes empresas, teóricos respeitados… onde, novamente, estão as mulheres? Se o mundo já parece ser feito de homens, a religião, mais ainda. Não se aceitam papas ou padres mulheres, nem rabinos ou imãs.

 

Ainda nessa linha tradicional, a história do povo negro é habitualmente lembrada apenas em relação à escravidão e à decorrente luta, bravura, superação. Isso quando é lembrada, quando é ensinada brevemente nas escolas. Esquecem de ensinar a história do continente pré-invasão europeia, antes da tentativa de total destruição das tribos, das terras e das famílias.

 

Vinda para o Brasil junto nos navios negreiros e nunca apagada pela brutalidade do colonizador/missionário, a matriz africana perdura ainda hoje no Brasil. Com diferentes nomes e características, religiões naturais da África transformaram-se por aqui e concederam à mulher um papel não só de igualdade aos homens, mas de liderança. Se o mundo parece louvar apenas líderes homens, as religiões de matriz africana, no Brasil, dão total destaque para as mulheres, pois nas raízes, na matriz, não há distinção de quem pode ou não pode liderar.

 

Representatividade

 

 

A religião de matriz africana, além de abrir caminho para as mulheres comandarem seus terreiros, assumindo postos altos em suas casas, também possui representatividade com aqueles que não são bem vistos por outras religiões. Os terreiros são acolhedores, discutem sobre as questões de um mundo que está sempre em construção e desconstrução.

 

Os papéis das mulheres dentro dos terreiros são tão importantes quanto os do homem. As religiões de matriz africana entendem que os dois são essenciais para o funcionamento das casas. Porém, o fato dessas casas serem lideradas por mulheres, pelas iás, fazem com que outras mulheres queiram ser iniciadas, porque se sentem confortáveis, seguras e valorizadas.

 

Tradição oral

 

A pessoa idosa é vista na sociedade como alguém que não tem mais tanta coisa para acrescentar e que, muitas vezes, são mandadas para uma casa de repouso ou a um asilo. Diferentemente disso, nas religiões de matriz africana a pessoa mais velha tem um papel extremamente importante, principalmente as mulheres. Não existe um livro, um manual de instruções e nem regras específicas de como deve funcionar um terreiro, seja de umbanda ou nação. O que existe é a tradição oral. Para essas religiões, a tradição oral é uma riqueza que o povo carrega, e que traz a essência da religião, os fundamentos, a doutrina. É através dessa oralidade que as pessoas mais velhas são responsáveis pela transferência de saberes.

 

As mulheres mais velhas têm papel preponderante

 

As senhoras mais velhas têm um papel preponderante e são enxergadas como alguém com grande experiência de vida na religião, acumulando todos os fundamentos a elas ensinados e que serão repassados à sucessores.

 

A tradição oral é a herança mais preciosa da religião. Basta sentar ao lado de uma destas pessoas para que, através da oralidade, se tenha uma aproximação com a religião. A valorização, o respeito, a admiração, a proteção e o cuidado são o que definem o papel destas mulheres.

 

Preconceito

 

Embora exista intolerância a outras religiões no Brasil, as religiões de matriz africana acabam por receber outras dimensões justamente por serem oriundas da África. Desde sua chegada ao Brasil, os praticantes de religiões de matrizes africanas foram alvo de perseguições por manifestarem a sua fé.

 

No continente de origem, o culto à ancestralidade é realizado em espaço público. No Brasil, os seus aspectos foram modificados como forma de proteção para evitar perseguições, por isso o motivo do sincretismo da Umbanda, por exemplo, com a religião cristã.

 

Mesmo modificando os ritos, os praticantes não conseguiram evitar perseguição e violência. Dados levantados pela Secretaria Nacional de Diereitos Humanos apontam 697 casos de intolerância religiosa entre 2011 e 2015, sendo 71% contra praticantes de religiões de matrizes africanas. Muitas das agressões são verbais, incluindo postagens na internet. Mas também são registrados agressões mais graves, como incêndios nos terreiros, agressões físicas e quebra de símbolos sagrados.

 

Quando diversos terreiros e símbolos sagrados são atacados pelo simples fato de serem espaços representativos de religiões de origem africana, fica nítido que trata-se de uma expressão do racismo. 

 

A África está dentro de nós

 

Pelo senso comum, costumamos ter a tendência de separar política e religião como duas coisas que não conversam. A questão do estado laico é fortemente defendida como um valor máximo, mas raramente é aprofundada. O que muitas vezes não se discute é que, diferentemente das religiões de base cristã, a religiosidade de matriz africana está diretamente relacionada às raízes da população negra.

 

E por tratar-se de uma população historicamente colocada numa posição periférica em relação aos brancos, com direitos básicos repetidamente negados, o debate sobre a religião de matriz africana é necessariamente um ato político. “Entendo que não somos somente um espaço de religião, somos um espaço civilizatório mesmo, onde aprendemos a ser gente. Porque no mundo aí fora, tudo o que a gente faz eles dizem que não é coisa de gente. Tudo que a gente faz é meio humano, meio animalesco. E o meu papel como ativista foi dizer que não, que percussão, canto, teatro, música, tem tudo a ver conosco, é essa nossa tradição”, afirma Nina Fola.

 

A reafirmação destas raízes através da religião é, para elas, algo libertador.

 

Conforme as entrevistadas, numa sociedade em que elas se sentem oprimidas por suas características de mulheres, negras e de religião de matriz africana, é na interação religiosa, com pessoas que também sofrem opressões semelhantes, que elas encontram quem realmente são em essência. “O terreiro para a negritude tem essa importância de identidade, de um reforço identitário muito forte”, afirma Winnie.

 

O contato na religião entre as mulheres negras se torna libertador

 

É com base nesta lógica que algumas de nossas entrevistadas relacionaram espontaneamente, em suas falas, as vivências religiosas que desenvolveram ao longo da vida, com uma percepção política desta questão. A partir disso, elas desenvolveram uma postura militante, de luta contra os preconceitos religiosos, contra o racismo que está profundamente vinculado a essas discriminações, e de batalha por mais espaço na sociedade para que a população negra promova, celebre e viva sua cultura.

 

E para os negros brasileiros descendentes de escravos, que não tiveram, como os imigrantes europeus, a oportunidade de resgatar suas origens linguísticas e culturais da mesma forma, a religiosidade é um meio de entrar em contato com suas raízes e sua ancestralidade.

 

 

Winnie Bueno traz à tona a discussão sobre um projeto de lei da deputada Regina Becker Fortunati de 2015, que, baseando-se em princípios de proteção animal, propôs alterar uma emenda de uma lei que permitia o sacrifício de animais em rituais religiosos. Se este projeto fosse aprovado, as práticas de terreiros seriam diretamente afetadas.

 

Winnie defende que há um tom discriminatório na iniciativa da deputada – que teve apoio de uma parcela grande da sociedade -, já que outras religiões que defendem o sacrifício animal para o consumo da carne não são contestadas. “A gente tem um pressuposto, não é vamos lá e cortamos. Por que? E esse código é um código que para nós é muito importante. E, assim como em outras tradições se consome outras carnes com razão religiosa, nós fazemos esse consumo também. A diferença é que não é um peru da Sadia, é um animal que tem todo um trato, que tem todo um ritual para ser consumido”, destaca. Ela conta que após uma grande mobilização da população de terreiros do Rio Grande do Sul, o projeto foi derrubado. Mas as iniciativas, não raro, voltam a aparecer.

 

O resgate da ancestralidade, para Sandrali Bueno, é algo muito importante. Conforme a umbandista, há um sentimento de que suas origens e a História de seus ancestrais a acompanham ao longo da vida. E a iniciativa de assumir socialmente o lugar de mulher negra e praticante de religião de matriz africana é, segundo ela, um ato de militância. Sandrali defende que: “Num estado extremamente racista, extremamente intolerante, extremamente machista, quando a gente escolhe estar nesse lugar, a gente sabe que é para lutar para preservar essa tradição e preservar os princípios civilizatórios de um lugar que nós não conhecíamos geograficamente, mas que ontologicamente está dentro de nós. A África está dentro de nós”.

 

Para conferir mais vídeos clique aqui.

 

As entrevistadas

 

 

Miriam Estabel – Batuque e Umbanda; Praticante há mais de 50 anos e ialorixá há mais de 20; Fundou a casa Templo Nagô Obreiros da Divindade, em Viamão – RS

Nina Fola – Batuque e Umbanda; Praticante há 25 anos e militante política, cultural e religiosa há mais de 20; Fundadora e presidenta da OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) Africanamente, em Porto Alegre – RS

Mônica Martins – Umbanda; Praticante há 8 anos, acompanha há 13 anos; Terreiro São Miguel Arcanjo, em Charqueadas – RS

Sandrali Bueno – Batuque; Praticante há 47 anos; Ìyá no Terreiro Ilê Ialorixá Iemanjá, em Pelotas – RS

Winnie Bueno – Batuque; Ialorixá e praticante há mais de 12 anos; Terreiro Ilê Ialorixá Iemanjá, em Pelotas – RS

Reportagem Aline Silveira, Anna Carolina Chies, Bruna Andrade, Débora Sander, Jennifer Dutra e Iami Gerbase Fotos Creative Commons