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Onde estão os antigos moradores da Chocolatão?

Remoção considerada modelo pela Prefeitura de Porto Alegre completa cinco anos em meio a críticas e à descaracterização da antiga comunidade

Com o Monumento a Júlio de Castilhos ao centro e a Catedral ao fundo, a Praça da Matriz é a nova morada de Maria Regina dos Santos. Perto dali, sob o viaduto Otávio Rocha, vive Jorge Erivelto Oliveira. Em comum eles têm não só as calçadas e o frio do inverno. Ambos são antigos ex-moradores da Vila Chocolatão.

 

“O que adianta a casa estar bonita por fora e dentro morar a miséria?”. Esse sempre foi o questionamento do professor Luiz Ferreira, morador da Chocolatão desde 2008. Já em 2012, um ano após a remoção da antiga comunidade para o novo endereço, seu Luiz fazia duras críticas à falta de capacidade da Prefeitura em desenvolver projetos de geração de renda. Hoje, cinco anos depois dos moradores terem sido removidos, as reclamações acerca das oportunidades de trabalho ainda persistem.

 

Teto novo, novos problemas

 

A presidente da associação de moradores mostra o espaço que ainda resta para a construção da sede

Localizada há mais de 20 anos na avenida Aureliano de Figueiredo Pinto, ao lado dos prédios da Justiça Federal, a Vila Chocolatão foi transferida em maio de 2011 do centro da cidade para a zona norte, em um residencial construído no final da avenida Protásio Alves. A parceria entre a Prefeitura Municipal e o Tribunal Regional Federal transferiu 181 famílias das 225 que viviam no terreno pertencente à União, por meio de uma ação reivindicatória. “Eles não perguntaram nada pra gente, simplesmente disseram que a área era da Justiça e ponto. Um dia cheguei e a casa do meu vizinho já tava sendo demolida”, lembra o servente de obras Lazaro de Oliveira. Contrapondo, a coordenadora da Rede de Sustentabilidade e Cidadania da Secretaria de Governança Local, Vania Gonçalves de Souza, enfatiza que houve diálogo com os moradores: “O diferencial desse projeto foi a escuta da comunidade. Pelo desejo da comunidade, nós conseguimos mudar o projeto arquitetônico que não previa unidade comercial, por exemplo”.

 

Além disso, o secretário municipal de Governança Local, Cezar Busatto, destaca que houve uma preparação junto aos moradores antes da remoção, com instalação provisória de banheiros comunitários e uma unidade de triagem para que “as pessoas se acostumassem com a nova vida que teriam”. Para Busatto, o projeto também é modelo em função da rede de parcerias formada por Prefeitura, Tribunal Regional Federal, Demhab (Departamento Municipal de Habitação) e algumas Ongs. Ainda, segundo ele, esse tipo de reassentamento difere de políticas de moradia existentes, como o Minha Casa, Minha Vida.

 

 

É bem verdade que o passado de lama ficou para trás. A situação de total abandono de infraestrutura foi substituída por novas casas, asfalto e acesso ao saneamento básico. “Lá embaixo (como os moradores se referem ao antigo bairro), eu nem dormia direito, com medo dos incêndios”, lembra Jéssica Borges, 24 anos. Foram diversas as vezes em que a comunidade teve de ver o pouco que tinha sendo queimado junto com os sonhos. O fogo era provocado pelos constantes “gatos” na fiação elétrica, já que muitos moradores não tinham condições nem de cumprir a taxa simbólica da conta social, e as casas muito próximas acabavam facilitando o alastramento do fogo. Agora, a energia é garantida pela Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE) com segurança. No entanto, pagar as contas é o principal desafio da comunidade na nova residência.

 

Como cerca de 90% dessas pessoas trabalhavam com a coleta e reciclagem do lixo produzido na região central de Porto Alegre, hoje, 15 quilômetros mais distantes, esse serviço não pode mais ser realizado, ocasionando grandes dificuldades na geração de renda. “Aqui é muito longe, lá a gente tava no centro. Aqui se tu não tem dinheiro pra dois ônibus, não faz nada”, comenta Lazaro.

 

Mapa com a distância entre a antiga e a nova Chocolatão

 

No galpão de reciclagem construído junto ao residencial são poucas as vagas, 32 pessoas trabalham atualmente no local e a lista de espera é sempre grande, como conta um dos coordenadores, Flávio Januário: “Nossa administração conseguiu se organizar esse ano e melhoramos o rendimento”. Ex-carrinheiro, o jovem de 21 anos mostra satisfação com o local onde vive hoje, muito atribuída à oportunidade conquistada na unidade de triagem. “É uma pena que não possa ter mais gente. Quem trabalha aqui se esforça pra não perder, porque sabe que a fila é enorme”, diz. Para o secretário Cezar Busatto, existe a possibilidade de incorporação de novos trabalhadores na unidade: “Poderia se fazer até três turnos de trabalho, mas essa decisão é deles, não vamos interferir nisso”, explica. Flávio também relata que o galpão recebe uma verba de R$4.200 para manutenção, mas que já teve que usar parte desse recurso para corrigir erros na construção do prédio. “Enquanto a gente podia ter investido em material, tivemos que construir essa barreira de tijolo na volta, porque em dia de chuva a parte de trás alagava”, diz.

 

O lixo, fonte de renda para cerca de 90% dos moradores da antiga Chocolatão, hoje gera trabalho para poucas famílias. O Galpão da reciclagem tem apenas 32 vagas de trabalho

 

Segundo a presidente da Associação de Moradores da Vila Chocolatão (AMVIC), Fabiana Pereira, promessas que não foram cumpridas pela Prefeitura e falta de capacitação também contribuíram para a situação de desemprego: “Eles falaram que aqui a gente ia ter oficinas para aprender a fazer fralda, que as mulheres trabalhariam na creche, mas nada”. A creche comunitária Nossa Senhora Aparecida hoje é gerida por uma organização religiosa e as funcionárias são de fora da comunidade. Já Vania Gonçalves garante que esse foi o resultado de uma decisão dos moradores que não se sentiram seguros para administrar a creche. “Eu não vejo problema uma organização religiosa assumir, elas têm mais experiência”, afirma Busatto. Ainda segundo o secretário, não faltaram ofertas de empregabilidade na região.

 

“Essa remoção já começa errada porque quem julgou era parte interessada no terreno. Aí colocam o sujeito do outro lado da cidade, sem a única alternativa de trabalho que ele tinha”, afirma Régis Lisboa, estudante de Direito e membro do GAJUP. O GAJUP (Grupo de Assessoria Justiça Popular) é vinculado ao Serviço de Assessoria Jurídica Universitária (SAJU) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e tem acompanhado a comunidade desde o início da remoção.

 

O Grupo, contrário ao projeto, teve importante participação durante o processo, com conquistas alcançadas em conjunto com a comunidade. Até 2012, o Demhab realizava a cobrança de aluguel pelas novas casas, algo que na época nem poder público nem moradores sabiam ao certo até quando teriam de pagar. Vania, da Secretaria de Governança Local, explica que a cobrança é comum em qualquer projeto de reassentamento e que a previsão era de um período de 20 anos, mas acabou sendo suspenso: “Eles ainda tem essa prerrogativa lá”, diz. “Era um aluguel vitalício sobre uma casa que nunca seria deles, mas bastou a gente enviar um ofício ao Ministério Público com a denúncia, que esse absurdo foi suspenso”, diz Régis. “Eles cobravam conforme a renda da pessoa, daí quando terminou foi uma vitória nossa, porque eles (Demhab) tiveram que devolver o que tinha sido pago”, relembra Fabiana.

 

 

Além das dificuldades com a situação financeira, os moradores também relatam problemas no acesso a serviços básicos, como saúde. “O posto de saúde tá sempre cheio, demora demais, e falta muita coisa. A minha bebê vai fazer um aninho e não fez nenhuma vacina. O posto não tem geladeira pra guardar a vacina”, conta a recicladora Vilma Rodrigues. A situação do posto Tijucas, de acordo com Vania Gonçalves, é comum em todo o país: “Não é um passe de mágica, a gente não pode negar as dificuldades”, diz. Ainda antes do reassentamento das famílias, o GAJUP em parceria com a Associação dos Geógrafos do Brasil (AGB), realizou um laudo técnico que informava que não havia serviços públicos de saúde, educação e assistência social suficientes para atender a nova demanda no bairro Mario Quintana, já sobrecarregado.

 

A precariedade dos serviços de saúde na região é motivo de preocupação para a recicladora Vilma Rodrigues

 

Diante de diversas necessidades, tanto os moradores antigos como os novos seguem certos de que a busca por uma vida melhor passa pela união e pela ação coletiva, seja qual for o endereço. É comum em suas falas a exigência pela sede física da Associação de Moradores: “A gente precisa de um lugar para se reunir, conversar, ver o que precisamos. Em casa a gente não tem espaço”, afirma Tia Jussara, moradora recente da Nova Chocolatão.

 

Fabiana Pereira, presidente da Associação, explica que essa é uma antiga reivindicação dos moradores e que a construção do local estava prevista durante o projeto. No entanto, uma parte do espaço destinado à sede hoje é ocupado pela Biblioteca Comunitária, coordenada pela ONG Cirandar. Ainda que a Prefeitura garanta que essa foi uma decisão da antiga gestão da associação, a situação causa estranhamento: “Aquele lugar não pertence aos moradores, a gente não se sente parte. Pra conseguir uma chave emprestada é complicado”, diz Fabiana. “Na antiga Chocolatão a sede de moradores ficava localizada no coração da comunidade, era um ponto de encontro”, relembra Régis Lisboa.

 

Uma comunidade fragmentada

 

Para Fabiana Pereira, os antigos moradores deixaram o novo loteamento por falta de oportunidades

Andar pela Nova Chocolatão hoje é perceber uma dicotomia “nós e eles”. O GAJUP estima que 70% dos moradores originais não estão mais no novo loteamento, já a Prefeitura não possui números atuais. “Se tu for lá, tu vai ver tudo bonito, rua cheia de carros, antena de TV… Mas são tudo novos moradores! Os velhos já saíram”, afirma o professor Luiz Ferreira. Para a Secretaria de Governança Local, a evasão não é justificada somente pela falta de geração de renda. De acordo com Vania, os moradores “tem o direito de ir e vir”.

 

 

 

 

Mas ainda que não haja consenso nos motivos, onde estão os antigos moradores da Vila Chocolatão? Seu Luiz conta que diversas pessoas venderam as casas, alguns chegaram a ir para o interior e muitos são encontrados vivendo nas ruas de Porto Alegre, assim como Jorge Erivelto e Maria Regina.

 

Maria Regina, antiga moradora da Chocolatão, manifesta tristeza ao falar sobre a perda da casa

Devido à questões financeiras e desentendimentos familiares, o ex-companheiro de Regina acabou negociando a casa onde moravam. Desamparada, ela foi acolhida por moradores de rua na Praça da Matriz desde então. Há cerca de quatro anos sem casa, Regina tem sofrido com problemas de saúde e relata a falta que sente de um teto, principalmente de ter um banheiro.

 

 

 

 

Para Jorge a mudança do centro para a periferia da cidade causava preocupação: “Eu não tinha uma casa muito boa, mas tando no centro, a gente catava, conseguia alguma coisa pra se manter”. Ainda assim, ele conta que resistia às dificuldades e foi expulso de casa acusado de tráfico de drogas: “A Brigada chegou chutando a porta, arma na cara e me tiraram. Deram a desculpa de tráfico, mas eu era só usuário”, diz. A Prefeitura afirma desconhecer essa denúncia.

 

Para a defensora pública Luciana Schneider, dirigente do Núcleo de Defesa Agrária e Moradia da Defensoria Pública do estado, esse tipo de evasão “é uma das principais consequências da realocação em local diverso daquele em que as pessoas já moravam”. Para Vania Gonçalves, o único ponto frágil do reassentamento foi em relação aos usuários de drogas: “O problema da drogadição lá é grave. E a gente sabe que o usuário de drogas é o que menos se adapta à unidade habitacional”, afirma.

 

O GAJUP considera “inaceitável” que o projeto de reassentamento da Vila Chocolatão seja considerado modelo, visto que “a falta de um instrumento efetivo de geração de renda resultou na evasão do novo loteamento em menos de dois anos da remoção”. Já a Prefeitura reafirma que a iniciativa é reconhecida internacionalmente. “Nós levamos em conta uma dimensão humana e social que os grandes projetos de construção de casas não têm e geram grande ‘monstrengos’ aí”, afirma Cezar Busatto. Tendo em vista os problemas citados, Luciana Schneider discorda: “Por mais que a realocação dos moradores da Vila Chocolatão seja considerada bem sucedida pelo Município de Porto Alegre, está longe de ser um modelo de reassentamento”, diz.

 

O Gajup, grupo vinculado ao Saju/UFRGS, estima que 70% dos moradores originais evadiram do novo endereço

 

Para Régis Lisboa, projetos como o da Nova Chocolatão nada mais são que a “revitalização” das áreas centrais através da expulsão dos mais pobres para a periferia. “Não poderiam ter construído as casas lá? A preocupação do governo era só tirar os pobres do centro, eles tavam preocupados com a Copa de 2014”, afirma seu Luiz. No endereço da velha Chocolatão foi construído um estacionamento. Enquanto isso, Maria Regina segue inconformada: “Eu ainda quero ter a minha casa de volta”, espera. Jorge também não se acostuma, para ele viver na rua depois de ter um teto é muito difícil: “A casa é o começo de tudo, é a nossa história”, reflete.

 

 

 

 

Segundo Jorge, ele foi expulso de casa pela polícia por ser usuário de drogas

 

Por Gabrielle de Paula Fotografias Yamini Benites