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Extremamente visíveis

Na primeira parte da reportagem especial "Gente à margem", o crescente número de pessoas em situação de rua e a violência a que estão sujeitas

Soa até estranha a velha história de que morador de rua é invisível. Ora, é invisível o que não é visto ou é cego quem não vê? Elas e eles estão ali, e suas coisas também. Corpos que ocupam espaços.

 

O mobiliário da cidade são os pertences espalhados pela calçada ou descansando em carrinhos de supermercado. As lonas servem de cortina, o papelão de estrado pro colchão. Sem suíte, sem banheiro, sem sala de jantar. A de estar é a rua.

 

“Todo dia uma agressão diferente”

 

Já era madrugada, quando Jorge Lopes (45), foi acordado abaixo de pauladas e de uma violência que o deixou com marcas e cicatrizes no corpo. Na época ele não sabia quem eram os “tais carecas”, mas hoje sabe que foi atacado por um grupo de skinheads em uma das capitais brasileiras que mais acessa conteúdo neonazista na internet. Esquecer seria sangrar todo dia, e Jorge não esquece e nos faz doloridamente lembrar; é mesmo todo dia que renasce um Cristo nas ruas descuidadas dessa cidade cinza, surgido das cinzas da violência urbana: “É isso. Quem mora na rua vive todo dia uma agressão diferente, preconceito, doença, frio e esses nazistas que aparecem pra nos bater”, diz.

 

De acordo com o Mapa dos Direitos Humanos, do Direito à Cidade e da Segurança Pública da Câmara Municipal, em 2015, houve um aumento de 25% nos casos de violações de direitos humanos contra a população de rua. Desses, 19% foram de violência física, e na maior parte contra pessoas negras ou pardas.

 

Adilio Andrades (34) é morador da praça próxima à rótula do Papa, ele conta que precisou ficar internado quatro meses no hospital após um traumatismo craniano, decorrente de uma briga de rua: “Eu saí da minha casa porque queria me livrar das brigas, mas a gente nunca tá livre”.

Adilio saiu de casa por problemas familiares e hoje vive de “bicos”

Segundo Jorge, que também é integrante do Boca de Rua, jornal produzido por moradores de rua, os ataques contra essa população se tornaram mais frequentes. Na edição de número 63 do jornal, além da capa e da contracapa, cinco matérias e uma entrevista (com a delegada responsável pela investigação de um dos casos relatados) abordam a temática.

 

As reportagens contam as histórias de quatro moradoras e moradores de rua assassinados em Porto Alegre com requintes de crueldade: Ana Carmem foi encontrada estrangulada dentro de um contêiner de lixo; Jederson Michel foi morto com pancadas de paralelepípedo na cabeça no centro da cidade; Rodrigo Veloso foi espancado por torcedores de um clube de futebol e recebeu golpes com um taco de beisebol – passou cinco dias internado no hospital diagnosticado com traumatismo craniano antes de falecer; e Paulo Ricardo foi atingido por diversos tiros na Praça da Matriz. O último caso foi o único que teve ampla repercussão na imprensa.

 

Violência que vem de todos os lados, e do Estado também

 

“Só de pensar em tiro de borracha, me dá um nervoso. Tinha até pesadelo”, relembra Débora Oliveira (27) das diversas remoções que sofreu pela Brigada Militar. A última delas foi em dezembro de 2016, quando uma operação da Guarda Municipal, da Secretaria Municipal do Meio Ambiente (SMAM), do Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU), da Brigada Militar, e da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), removeu os moradores do viaduto que abriga Débora – ainda hoje, apesar da remoção momentânea.

 

Viaduto Otávio Rocha, Avenida Borges de Medeiros, sem número.

 

Débora conta que tem pesadelos com as remoções feitas pela polícia

Ali é condomínio. E horizontal. Os cerca de 200 metros de calçamento cobertos pela escadaria do Viaduto Otávio Rocha preenchidos de moradas: em média 1×1, embora algumas se espichem mais, e imagina quantos lotes caberiam ali, pra esquerda e pra direita por entre os velhos pilares e as pichações feitas e refeitas num mural de intervenção artística que sobrevive aos prefeitos das tintas cinzas.

Tão logo as pessoas saem,
tão logo as pessoas voltam.
Não é teimosia não;
é simplesmente não ter pra onde ir.

Na maioria das vezes, as remoções são justificadas pelo uso de drogas no entorno dos locais, o que segundo o pesquisador Leonardo Palombini, é um engano. A partir do olhar da Geografia, Leonardo investigou em sua dissertação de mestrado como é a vida de quem não tem posse sobre o território. De acordo com a pesquisa, muitas ocupações mantêm um código de conduta para evitar as expulsões tão rápidas, ou seja, a moradia não pode ser lugar de drogadição. “Eles também ocupam lugares que são subutilizados, como pontes e viadutos. Lugares que permitem a ocupação por mais tempo, de forma que eles não incomodem, já que não possuem poder nenhum sobre o espaço”, explica o pesquisador.

 

Espalhados por viadutos, praças e marquises

 

Espaço não falta a uma população que cresce exponencialmente em Porto Alegre: conforme o censo realizado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 2016, a alta no número de pessoas em situação de rua foi de 75% em oito anos – foram contabilizadas 2.115 pessoas vivendo nas ruas da capital. Utilizando dados da mesma pesquisa, oficialmente, a Fasc trabalha com 57% de aumento em cinco anos. Ainda assim,  o MNPR (Movimento Nacional da População de Rua) estima um número ainda maior: hoje de 3 a 5 mil pessoas estariam nesta condição apenas em Porto Alegre.

 

 

Viaduto da Borges se tornou símbolo do aumento de moradores de rua

Escolha a sua medição, qual número melhor convém; a opção, porém, pouco importa quando o melhor dos cenários é aquele em que a quantidade de moradores de rua aumentou a mais de sua metade em meia década. No Brasil da crise que salva bancos, a rua é o destino.

 

E ali no Viaduto Otávio Rocha talvez esteja o metro quadrado mais desvalorizado da cidade ou, ainda, as pessoas cúbicas mais desvalorizadas pela cidade.

 

O bom de se estar em ponto de tamanho destaque são as doações. Ninguém passa fome: o que se passa ali é solidão.

 

Poucos olhos se demoram nos corpos que habitam o viaduto cartão-postal da cidade, inaugurado em 1932, um monte de concreto nomeado Otávio Rocha, que liga Duque de Caxias no alto e Borges de Medeiros embaixo, e estende suas escadas da Fernando Machado a Jerônimo Coelho. Todos homens memoráveis servindo de endereço aos seres esquecidos. E estar ali  tem mesmo mais de um lado bom, não são só os presentes: a iluminação ajuda a que, ainda que jamais vistos, quem mora ali possa ao menos ver.

 

Cleiton Rodrigues (27) mora nas ruas há 10 anos e diz que a quantidade de pessoas nos viadutos é maior: “Aqui no entorno da rodoviária, agora todos os viadutos têm gente embaixo”, diz. Na região, mesmo que a concentração de pessoas seja ignorada pelos passantes, a moradia de Cleiton chama a atenção. Ele demonstra orgulho do lar que ergueu ao fim da avenida Júlio de Castilhos, em frente a um templo evangélico e embaixo de um barulhento viaduto.

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Apesar do carinho e do esforço com que montou sua casa, a deixará para trás em breve sem remorso algum. Isso porque conseguiu negociar um terreno na zona sul da cidade, para onde vai com a companheira, Bruna, e, claro, com os cachorros – são quatro. Falta só acertar com uma carreta para carregar tudo até o novo endereço. Embaixo do viaduto, a família tem cama, mesa, fogão e diversos ursinhos de pelúcia de decoração. Apesar de causar incômodo aos responsáveis pelo templo, Cleiton conta que a organização do “lar a céu aberto” sensibilizou as pessoas a fazerem doações.

 

 

 

Um pouco distante dali, ainda no Viaduto da Borges, vive Deivid Duarte, sob a estrutura de uma barraca improvisada. Cadeirante, ele foi abandonado pela família e está nas ruas há 9 anos. Com olhar forte e humor sarcástico diz que é até mais feliz do que o restante das pessoas, “que só se preocupam com dinheiro”. Ainda assim, ele não deixa de criticar o poder público pela falta de atenção com a população de rua: “Esse governo não tem nenhum projeto pra quem mora na rua, a não ser DMLU”, afirma Deivid.

Deivid mora nas ruas há 9 anos

Também à espera de providências do poder público, está Renata dos Santos (41). Há dois anos, ela vive em uma barraca em um dos canteiros da Avenida Erico Verissimo, próximo ao antigo estádio Olímpico. Neste mesmo período, sofreu um atropelamento pela linha de ônibus T5, da Carris: “Eu tava com o carrinho da reciclagem no meio fio, e o ônibus atropelou minhas pernas. Se não tivesse polícia perto, o motorista não tinha parado”, conta. 

 

Nesses dois anos, Renata convive com as dores de uma perna quebrada, amparada  apenas por uma bota ortopédica e pela doação de analgésicos dos vizinhos. Entre idas e vindas em perícias da Previdência Social, ela ainda não conseguiu receber o seguro DPVAT (indenização para vítimas de trânsito) e reclama de a Carris nunca ter dado nenhum apoio.

 

Ainda que precise de melhor estrutura devido aos problemas de saúde, ela se nega a procurar pelo albergue: “As pessoas sempre perguntam por que a gente não vai, mas albergue é muita humilhação”, diz.

 

 

 

LEIA A SEGUNDA PARTE DA REPORTAGEM ESPECIAL GENTE À MARGEM

Na segunda parte da reportagem Gente à margem acompanhe mais histórias de quem vive na rua, a situação dos albergues e da assistência social na cidade. — 2ª Parte: Desassistência social?

 

Reportagem Arthur Viana e Gabrielle de Paula Fotos Yamini Benites Infográfico Johannes Kolberg Vídeos Bruno dos Anjos