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Mulheres outra vez

Em um contexto de aumento da violência doméstica no Brasil, mulheres ainda relatam a dificuldade de identificar os sinais, a revitimização pelo Estado, as dores vividas, mas sobretudo, a escolha pelo renascimento

Embora o feminicídio seja o lugar mais distante em que a tristeza pode chegar, muito além das agressões físicas, o alto índice de violência contra a mulher assume múltiplas formas. São as pressões psicológicas, o aumento da tensão no relacionamento e os ataques morais que, muitas vezes, iniciam o ciclo de uma violência que até soa inusitada quando pensamos no termo “doméstica”. Pois mesmo que aquilo que possa estar dentro de casa seja algo privado, a violência contra as mulheres sempre se mostrou um problema social.

Em um país onde, no ano passado, a cada 24 horas, em média, 13 mulheres foram vítimas de algum tipo de violência (Rede de Observatórios da Segurança), as denúncias seguem sendo o principal grito feminino, depois de tanto esforço para se ficar em silêncio.

dez mortes em um único feriado

Em março, a Lei 13.104/2015, Lei do Feminicídio, completou 10 anos. Em outubro de 2024 foi atualizada, elevando a pena até 40 anos de prisão. O “Pacote Antifeminicídio”, como ficou conhecido, também aumentou as penas para lesão corporal, injúria, calúnia e difamação, se cometidos em contexto de violência contra a mulher. Ainda que seja um instrumento fundamental para a punição dos agressores, especialistas apontam que somente a lei não tem força para acabar com um problema estrutural.

Para Ivana Machado Battaglin, Promotora de Justiça (MP-RS) e coordenadora do Centro de Apoio Operacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher, a lei foi muito importante para dar visibilidade a um fenômeno que precisava ser nomeado e para que se  tivesse estatísticas um pouco mais precisas a respeito desse tipo de crime, que ficava mascarado com os demais  homicídios. “A cultura machista, que é o que mata as mulheres, ela não muda porque a lei entrou em vigor. Nós precisamos de políticas públicas mais eficazes naquilo que a própria lei Maria da Penha fala, que é o da prevenção. E nisso o Estado brasileiro está pecando, pois por esse viés, a gente vê que os números não cedem. A gente segue vendo um cenário desolador”, diz Ivana.

De acordo com o levantamento realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), mais de 21 milhões de brasileiras com 16 anos ou mais relataram ter sofrido algum tipo de violência nos últimos 12 meses. Além disso, o relatório apontou que nove em cada dez agressões contra mulher foram presenciadas por alguém: 47,3% eram amigos ou conhecidos das vítimas, 27% eram filhos e 12,4% tinham outro grau de parentesco.

No Rio Grande do Sul, o Mapa divulgado pela Polícia Civil mostrou que houve queda no número de feminicídios no estado, com 72 casos registrados em 2024, uma redução de 15% em relação ao ano anterior, e 235 tentativas. No entanto, apesar da diminuição no índice, neste ano foi revelada uma verdadeira crise no atendimento às vítimas de violência, após o feriado de Páscoa, no qual 10 mulheres foram assassinadas por serem mulheres. Para Márcia Soares, diretora executiva da Themis, organização que presta assessoria jurídica às mulheres há mais de trinta anos, a situação no Rio Grande do Sul é alarmante: “Se considerarmos 72 casos em um ano, significa que a cada cinco dias, neste estado, uma mulher é assassinada por ser mulher. Precisamos prestar atenção na subnotificação das tentativas de feminicídio. Há uma desqualificação dos delitos de tentativa de feminicídio para lesão corporal grave, desconsiderando um histórico de violência na vida da mulher. Temos firme convicção de que não foram 235 tentativas”, diz.

No dia 24 de abril, a cúpula da Segurança Pública do Rio Grande do Sul anunciou novas medidas de proteção à mulher, mas problemas como falta de efetivo e a espera de até 8 horas para atendimento seguiam ocorrendo na 1ª Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (1ª Deam) em Porto Alegre.

As denúncias de precariedade de atendimento à violência contra às mulheres culminaram na troca no comando do Departamento de Proteção a Grupos Vulneráveis (DPGV) e também do chefe da Polícia Civil, Fernando Sodré.

Vítima de tentativa de feminicídio pelo ex-namorado em 2019, a psicóloga Nádia Bisch lembra que o que a fez desistir da denúncia no primeiro episódio de agressão sofrida, foi a demora na delegacia: “Eu passei o dia inteiro lá. As minhas amigas faziam revezamento para não me deixar sozinha, mas o sistema tava fora do ar e aí eu desisti”. A revitimização pelo Estado, segundo ela, também ocorreu após a tentativa de feminicídio. “Tudo é difícil, no registro, em audiência, no hospital…Saí do hospital público cuspindo sangue, com joelhos quebrados, não fizeram nem o raio x, o médico não levantou da cadeira e eu saí de lá com uma receita de dipirona”.

A situação humilhante foi o que motivou Nádia a construir um projeto de apoio para mulheres vítimas de violência, o Núcleo Lótus, que além do acompanhamento psicológico com valores sociais, também disponibiliza assessoria jurídica. “Eu pensei, ‘se eu, que tenho condições e conhecimento, tô saindo assim, o que sobra para as mulheres que não tem recurso para pegar um ônibus para ir até o Palácio da Polícia?’”, diz.

Depois de uma noite inteira em uma delegacia, após registrar a ocorrência, a designer de interiores, Renata Prates, foi informada de que havia mais de trinta registros do mesmo tipo de agressão contra o ex-namorado, mas os processos não haviam sido levados adiante. “Na hora eu decidi, já que vou morrer mesmo, pelo menos eu vou seguir com a denúncia para todo mundo saber quem é. Eu tinha medida protetiva e ele continuava me perseguindo. Eu não sabia  que após fazer o boletim eu tinha que enviar para a Defensoria Pública, ninguém informou. Eu tinha quinze boletins e não tinha nenhuma comunicação entre os órgãos. Aí, depois que enviei, saiu o mandado de prisão”.

Já a assistente social Jeysi Alvarez acredita que teve sorte ao buscar ajuda. Após ser agredida e expulsa pelo companheiro da casa onde viviam, ela contatou a Brigada Militar: “Quem veio atender a ocorrência foram duas brigadianas e fez total diferença naquele momento que eu estava toda machucada, rasgada, com meu corpo exposto. Deu um certo alívio ver duas mulheres me acompanhando. Chegando no Palácio, eu vi que as vítimas todas estavam com policiais homens, eu era a única acolhida por mulheres”, lembra.

Em meio às dificuldades no acolhimento às vítimas, a promotora Ivana Machado aponta avanços nas notificações. “Quando a gente olha os dados, a gente vê um aumento de todas as formas de violências e o próprio relatório [FBSP] traz a explicação de que são as duas coisas: aumento da violência e aumento de notificações, porque hoje as mulheres sabem que não precisam aguentar caladas. Mas quando a gente pensa em denúncia, também precisa de uma estrutura de acolhimento. No caso específico do Rio Grande do Sul, o que faz muita falta é a Secretaria de Políticas para as Mulheres, que fazia toda a articulação entre os órgãos”.

“Para que as mulheres possam romper o ciclo de violência, é necessário que a lei seja acompanhada de um conjunto de medidas. Precisamos de capacitação e qualificação na escuta de quem trabalha nas delegacias, diálogo social e campanhas sociais fortes. São necessárias ações diretas com os homens, criação de centros de referência e ajuda psicológica. Os filhos dessas mulheres também precisam ter preferência quando é necessário fazer transferência de escola. Essas ações formam um conjunto de retaguarda para que elas reconstituam suas vidas. A Polícia e a Justiça são apenas uma parte”, afirma Márcia Soares. A especialista aponta que o principal desafio para as vítimas de violência se reconstituírem como sujeitas de direito é contar com uma rede de apoio e recursos econômicos.

Os marcadores sociais também demonstram que mulheres negras e periféricas estão mais vulneráveis a esse tipo de crime. Os dados da 5ª edição do relatório Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil, mostram que 64,2% das mulheres vítimas eram negras e 53,6% vivem em cidades do interior. A rede de apoio, além dos amigos e familiares, também é constituída por ONG’s, redes comunitárias, e serviços do poder público, como delegacias especializadas, serviços de saúde e centros de referência. Segundo o Governo do Rio Grande do Sul, apenas 3% das cidades gaúchas possuem casas de acolhimento, são 16 casas, duas delas em Porto Alegre. “Também passamos por um período em que o governo federal desestruturou todos os serviços de atenção às mulheres, que já eram insuficientes. O mesmo aconteceu aqui no estado. A OMS e a OPAS já disponibilizam protocolos internacionais, porque se trata de uma questão de saúde e de assistência social. Se trata de priorizar a vida das mulheres”, completa Márcia.

Além disso, dor é um sentimento tão íntimo e particular, que ainda torna muito complexa a compreensão da violência doméstica. Muitas vezes, a percepção dos primeiros sinais do ciclo de violência podem ser confundidos com apenas um “ele perdeu a cabeça”. “Cada vítima tem uma particularidade, algumas permanecem no ciclo por dependência econômica, outras por dependência emocional. Por isso que a violência doméstica é tão difícil de compreender e de lidar. Não tem uma explicação única, muda de acordo com  cada vítima”, afirma a promotora Ivana Machado Battaglin.

não desistir de quem se é, transformar vulnerabilidades

Se cada vítima possui suas particularidades, não há como apontar quem cai bem ou quem se levanta melhor. Depois de sobreviver a uma tentativa de feminicídio, há quem demore mais para se encontrar, há quem desacredite no amor e na poesia da vida, quem desconfie da própria alegria. Ainda assim, o que une mulheres que experienciaram um trauma como esse não é a condição de vítima, mas sim a decisão de seguir em frente, celebrar seus próprios desejos e quereres. E ao decidirem renascer em uma mesma vida, são mulheres outra vez.

(Conteúdo sensível: os relatos abaixo apresentam episódios de violência)

Renata Prates, 46 anos, designer de interiores

“Eu tive uma tia, sabe, que foi vítima de violência e mesmo assim parecia algo distante. E desde o começo do relacionamento com ele eu via que não era legal. Nunca me bateu, não era nada físico, mas ele dominava o meu psicológico, nos quatro anos que eu fiquei com essa pessoa não tínhamos uma relação oficial. Era muito bom, daqui a pouco era muito ruim.Tinham discussões, ele falava que queria relacionamento sério, mas que antes eu precisava ‘zerar a minha vida’, não podia ter amigos, tinha que mudar de emprego, de onde eu morava. E eu gostava muito dele”.

“Ele batia nele mesmo ou saía chorando quando eu fazia algo que ele não queria. Achei que depois de tanto tempo juntos, não aconteceria. Um dia ele veio dizendo que queria casar, ele queria vender todas as minhas coisas, o apartamento, eu disse que não. E ele queria saber porque aquilo era mais importante que ele. Eu disse que não era o caso, mas que a minha vida era importante e eu não ia me desfazer da minha vida. Foi quando ele começou a quebrar tudo, meus violões, minha coleção de guitarras em miniatura. E quando eu afirmei que não casaria com ele, eu só lembro dele apertando meu pescoço, não sei quanto tempo durou, acordei com ele dando socos na minha cabeça. Foi na cozinha, pegou uma faca e colocou na minha barriga e disse que queria embora, como se eu tivesse impedindo. Depois disso, ele começou a me seguir nos lugares, a me ameaçar, e eu vi que não tinha como, já que ia morrer mesmo, vou denunciar, eu pensei”.

“Eu demorei para fazer a denúncia porque ele dizia que iria me matar, que iria atrás do meu filho. Isso aconteceu em novembro de 22, denunciei em fevereiro de 23. Ele dizia que quando eu fosse à delegacia, saberia quem ele era. E de fato, era um bandido. Tinham mais de trinta denúncias e ninguém levou adiante. Antes de denunciar, eu levei meu filho pro interior pra casa do pai dele. Protegi ele e encarei. Mas não tive paz, porque ele me seguia, não se importava com a medida protetiva, ia no meu trabalho, ligava todos os dias. Eu não sabia que tinha que enviar os boletins para a Defensoria. Aí eu fiz uma ocorrência tão desesperada que ligaram da delegacia. Aí depois que enviei [pra Defensoria Pública], saiu o mandado de prisão”.

“Foi só com terapia que consegui lidar com isso. Não tinha outro jeito. Terapia. Ele só foi preso em junho de 23, eu não conseguia sair de casa. Até que eu decidi sair de casa pra tocar, graças à música tive vontade de me aprimorar, sair de casa, conseguir confiar em alguém de novo. Meu sonho era tocar em uma escola de samba, eu pensava ‘eu preciso estar em uma bateria de escola de samba’. Me dei um prazo que até os 50 anos eu iria tocar, e levou um ano só para eu conseguir fazer isso. Amo o Bambas de paixão. Sempre toquei violão desde criança, aí mandei arrumar os violões que ele quebrou. Comecei as aulas de cavaquinho no projeto Cavaquíneos, fui aprendendo e tô me desenvolvendo. Toco mais pandeiro, se me convidar pra tocar pandeiro, eu vou.”

“Eu gosto da minha coragem, da minha força, acho que eu sou forte por tudo que passei e passo. Ser mulher é ter coragem pra tudo. Não só de enfrentar isso, mas criar um filho como eu crio, ou de botar a minha cara lá na roda de samba. Pra ser mulher, eu preciso de coragem”.

Jeysi Alvarez, 34 anos, assistente social

“Eu venho de um lugar permeado com esse tipo de violência. Na periferia a gente tem mães solo, o racismo que nos atravessa. A gente não pode normalizar, mas, sim, tive um histórico de ver isso nas mulheres que me cercavam. Já havia acontecido com a minha mãe durante a minha infância, também com amigas, primas, mulheres do meu convívio. Mas é bem como os estudos apontam, quando a gente tá dentro do ciclo, a gente não se dá conta, vai relevando. Eu tinha um relacionamento de 10 anos com esse ex-companheiro e em nenhum momento eu vi que ele era abusivo. Ou eu que não queria entender que estava passando por isso, e só fui entender a violência psicológica depois do fato da violência física”.

“Demorei para identificar nos acontecimentos do dia-a-dia, nas responsabilidades que eram colocadas a mim. ‘Se tu está comigo, tem obrigação de abraçar meus filhos’, eram falas muito constantes dele, né. Depois, conforme o tempo ia passando, fui compreendendo que isso também era violento, que me colocava num lugar de subserviência. No meu processo terapêutico eu precisei revisitar isso também. Foi num domingo à noite, nós chegamos de um compromisso de trabalho, tivemos uma discussão, e bastou uma frase que eu disse. Ele começou a me desferir socos, me chutou no chão, foi muito cruel. Ele quebrou a porta em cima de mim, sai correndo. Ele fechou o portão e me deixou na rua. Aí tu fica perdida, porque tem medo, mas ao mesmo tempo tu quer entender o que aconteceu. Até pra pedir ajuda, é algo muito solitário.”

“Eu tive sorte que quem veio atender à ocorrência foram duas brigadianas, e fez total diferença naquele momento que eu estava toda machucada, rasgada, com meu corpo exposto. Mas não é fácil. No hospital eu precisei fazer exames. Tu acaba tendo contato com o agressor nesse primeiro momento, porque ele foi levado ao mesmo hospital. Não sei dizer de onde tive força. São muitas perguntas, repetição de perguntas que tu já respondeu, é exaustivo. Mas eu acredito que tive esse olhar pela minha própria formação e por ter atendido casos de mulheres nessa situação no meu processo acadêmico. Só que é diferente. Agora tu tá ali do outro lado, né, sentindo a deficiência do sistema. Foi bem doloroso.”

“A minha escolha profissional foi fundamental para me conectar comigo de novo. A minha história me fortalece pra que hoje eu tenha um entendimento mais genuíno para acolher as mulheres que passam por isso. Quando a gente passa por algo assim, a gente vai pro mesmo lugar. E eu também estava em um momento de me curar. Pra ser uma vetora também, sabe. Dentro do recorte social que eu venho, eu também vejo a forma que mulheres que são mãe solo conduzem a criação dos filhos. Hoje eu consigo compreender a questão do racismo, a questão carcerária, fazer as ligações entre a violência e a forma de cuidado que esses meninos têm desde a primeira infância. A culpada não sou eu. Eu não sou a pessoa que tem que ter vergonha do que aconteceu, e sim, quem me agrediu. Quanto mais pessoas ouvem a minha história e o quanto eu consegui seguir minha vida, eu acho que é contagiante. Eu não posso simplesmente ficar só na condição de vítima. Tá tudo certo sofrer. Mas eu precisava pegar isso e fazer alguma coisa.”

“Eu amo cada pedacinho do meu corpo, eu amo essa mulher inteligente, potente que eu sou. É como o búzios, né: a gente internaliza para externar. Como que eu vou externar algo pro outro se eu não consigo lidar com isso dentro de mim”.


Nádia Bisch, 41 anos, psicóloga

“Em 2015, entrei pra dar aula em uma universidade e passei a supervisionar o núcleo de atendimento à violência, inclusive com grupos reflexivos para os homens agressores. E isso acho que me atrapalhou bastante quando entrei na relação abusiva, em me dar conta pra conseguir romper antes da pior violência, que foi a tentativa de feminicídio. Os primeiros sinais começaram quando a gente tava se conhecendo. Ele surgia do nada nos lugares, sempre insistente pra gente ter alguma coisa, e não era uma relação que eu queria firmar. Ele falava muito de planos, levava presentes pros meus filhos e, na época, eu romantizava muito a ideia. Hoje eu já vejo que foi um desrespeito ao meu primeiro não. Depois que a relação ficou oficial, ele começou a ter ciúmes do meu passado”.

“As agressões físicas vieram sempre na tentativa de romper a relação. Quando eu tentava sair, piorava. Era uma questão de controle, de manipulação e, nas tentativas de romper, veio a agressão. Quando eu já estava com medida protetiva, ele apareceu em um evento em que eu estava. Fui pra casa de uma amiga, fiquei com medo, porque na minha casa eu já tinha colocado alarme. Ele tinha tentado invadir, me perseguia. Quando ele aparecia, eu tentava ser mais amena. Aí nesse dia, a minha mãe tava na minha casa com a minha filha. Quando voltei da casa da minha amiga na madrugada, ele tava na frente do meu condomínio, três horas depois de me ver no evento. Na tentativa de manter a calma, eu aceitei ir até o carro dele conversando, ele disse que tinha ficado ruim de me ver. Quando cheguei na frente do carro, ele me imobilizou… Foi uma hora ali dentro. Me dava mata leão, apertava meu nariz, meu pescoço, me dava socos. Falava que ia desovar meu corpo. Eu só tô viva porque um rapaz que tava passando de carro, trabalhando, ele viu minhas pernas pra fora e resolveu meter a colher”.

“A primeira agressão eu não conseguia denunciar, porque eu não acreditava que ele era assim, muito naquela de achar que ‘ele perdeu o controle’. As minhas amigas diziam que eu tinha que denunciar. Tinha uma ambivalência da relação, do amor e do choque do que tinha acontecido, que foi semelhante: com aperto no pescoço, com ameaça, mas tinha sido em casa. E aí eu fui denunciar e não consegui fazer a ocorrência porque o sistema tava fora do ar. Depois disso, ele foi fazer de tudo pra mostrar que tinha jeito, que tava arrependido. Foi pros grupos reflexivos, terapia, até centro espírita, pra me mostrar que valia a pena, que iria mudar. E eu acreditei. Pensei que se eu ajudava os outros, ‘como que eu não ia olhar pra pessoa que tava comigo?’. Quando houve a violência final, ele ficou foragido e eu comecei uma luta por justiça, porque eu tava fora da minha casa e toda machucada. Nesse processo, eu soube que eu não era a primeira. Eu expus a situação e apareceu uma enxurrada de mensagens, e os tipos de agressão eram iguais. Me uni a seis mulheres que também tinham sido vítimas, e elas traziam o quanto era validante estar junto com quem tinha passado pela mesma situação. Porque a ideia da mulher que passa por isso é que conversar com uma pessoa que não vive, a pessoa não entende. ‘Mas como que tu voltou, como que tu aceitou?’. E aí elas me incentivaram a ofertar o encontro para outras mulheres, pra que elas pudessem ter essa escuta, e aí lançamos o Juntas por Todas.”

“Eu fui muito influenciada pelo amor romântico, sabe. Eu ainda acredito no amor, mas isso mudou muito na minha vida. Existe muita vida após a relação abusiva. A mulher se redescobre, se aproxima de valores importantes da sua vida pra além do tal relacionamento amoroso. Se o relacionamento que eu tenho, fere esses valores, não faz sentido lutar por isso.”

“Neste momento, ser mulher é ainda ter que lutar.”

“O que eu mais me orgulho é o que eu consegui ressignificar nessa história, de passar por algo que nunca imaginei e construir um espaço que atende e tem um compromisso social, mesmo sendo uma empresa. Ouvir das mulheres o quanto participar desses encontros tem mudado a vida, deixado mais forte e consciente, é o que faz sentido continuar. O lótus azul significa renascimento, por isso a gente escolheu o nome de Núcleo Lótus. O que eu ainda quero? [Pausa] Eu queria muito que a minha filha crescesse em segurança, que de forma alguma ela passe por qualquer situação próxima à violência. Pensar ela nesse mundo me assusta, então eu sonho que ela conquiste as coisas na vida sem ser ameaçada.”

Reportagem Gabrielle de Paula Fotos Winnie Ferreira
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