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Pelo fumo, em nome de uma região

Na fronteira da sustentabilidade e da sobrevivência no campo, trabalhadores do fumo enfrentam o risco de doenças, dos agrotóxicos e do trabalho desgastante para garantir o sustento de suas famílias

Faça chuva ou faça sol. Seja véspera de Natal, seja dia comum. O compromisso com a cultura do fumo é o compromisso de família, é o compromisso de uma região inteira. Da semeadura à colheita, são dez meses de atividades sujeitas às intempéries do clima e a um sistema de produção que exige trabalho pesado e muito planejamento.

 

Aqui o dinheiro que o trabalhador recebe chega apenas uma vez por ano. “Um ano perdido significa um próximo ano mais sacrificado ainda”, alerta o agricultor Roberto Ammon (49).

 

da semeadura à colheita

 

Há cerca de 30 km do centro da cidade de Santa Cruz do Sul/RS, percorrendo um cenário bucólico, de plantações verdes e construções que remetem à migração alemã, está o distrito de Monte Alverne. Uma localidade com cerca de 4 mil habitantes, que de geração em geração, dedica seus dias à fumicultura.

 

“Pesada”, “difícil”, “sacrificada”, “judiada”. Diferentes famílias, mas adjetivos em comum nos relatos que caracterizam a rotina de trabalho. Trabalhando na lavoura da família desde os 14 anos de idade, Silverio Christmann (51) hoje conta com a ajuda da esposa para tocar a plantação de fumo, em um terreno, que segundo ele, não é apropriado para o uso de máquinas agrícolas.

 

Mais de 150 mil famílias trabalham com o fumo na região Sul do país

 

O dia inicia ainda escuro e o chimarrão aquece o acordar nos meses de plantio, que são julho e agosto. “A gente acorda umas cinco e meia, trata os animais e depois vai para a lavoura. E não tem hora certa, é serviço o ano todo”, diz.

 

Silverio trabalha na lavoura de fumo desde os 14 anos

O contraste não está somente no azul dos olhos e no vermelho do rosto, está também no frio da época do plantio para os meses mais quentes, que marcam o período da colheita em novembro e dezembro. A pele branca castigada pelo sol, em geral, faz aparentar ter mais idade do que se tem. E há quem sofra agressões mais severas da exposição aos raios solares, como Joice Nagel (35). Desde que começou a trabalhar na agricultura, a produtora de fumo desenvolveu uma alergia aos raios UVB, que causam erupções cutâneas e exigem o uso de protetor fator 99.

 

Mas essa não é uma dificuldade que faça Joice desistir. Desde que se mudou com o marido da cidade para o interior, ela garante que não trocaria o trabalho na agricultura: “A gente planta cerca de 90, 100 mil pés. O que isso gera de renda para nós, com nosso nível de estudo, nunca conseguiríamos na cidade”, afirma.

 

A autonomia de ser patroa de si mesma e de definir sua carga horária de trabalho agrada Joice. Mas, ela reconhece que nos períodos de colheita, a rotina é intensa e as horas de sono são poucas. “A gente dorme no máximo umas seis horas, tem que colher o fumo cedo, as folhas também não podem ficar muito expostas, senão perdem a qualidade”. E é justamente a qualidade da folha que determinará o seu preço, previamente fixado pelas fumageiras. As folhas de tabaco são avaliadas por diferentes classes, ao todo são mais de vinte. A B1 é o tipo ideal, mas segundo Joice, praticamente ninguém consegue atingir a classe B1.

 

 

Nascida em uma família de quatro gerações de fumicultoras, Jaqueline Inês Assmann (30), assim como Joice, demonstra a força de mulheres do campo que se orgulham do trabalho que realizam: “Meu trabalho é tranquilo. Eu tive liberdade de escolher, e eu gosto do que faço. Só nos três meses de colheita que tu é obrigado a fazer. Teve um ano que passamos Natal e Ano Novo colhendo na chuva, mas se tu não colhe, tu perde”, conta.

 

A perda de uma safra pode significar menos horas de sono na vida do produtor do que o próprio processo de secagem das folhas, no qual a fornalha deve ser alimentada de meia em meia hora, durante dias. Isso porque “um pai de família que perde uma safra, se sente pressionado, fica bem triste”, é o que acredita Roberto Ammon. Ele e a esposa Rosane (48) trabalham nas lavouras de tabaco desde criança e explicam que um ano perdido requer diminuir o consumo da família durante o próximo ano inteiro.

 

Vendaval, muita chuva, granizo.

 

Intempéries do tempo que não dependem só do suor do trabalho, mas das orações do agricultor. Nesses casos, há o seguro da Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra) para minimizar as perdas. Mas ainda assim, Roberto explica que o seguro cobre somente as despesas com a lavoura. As contas chegam e não são todos que conseguem ter reservas para evitar as dívidas.

 

Joice garante que não trocaria o trabalho no campo por um emprego na cidade

 

doença da folha verde

 

Para um forasteiro que adentra as estufas de secagem das folhas, a sensação é a de se estar dentro de uma carteira de cigarro, devido ao forte cheiro. Mas, para quem depende da produção do tabaco, é sinal de que é o momento da satisfação de conclusão de um trabalho, e de amarrar as folhas para realizar a venda.

 

Além disso, o período mais crítico de contato com a folha já passou, pois é durante a colheita que podem ocorrer intoxicações, como a chamada doença da folha verde. A intoxicação é causada pela nicotina, por meio do contato da planta úmida com a pele. “Quando chove, ou com a umidade da cerração, a folha fica molhada e solta algo tóxico, não é todo mundo que se intoxica, mas eu com o fumo molhado passo mal”, explica Joice.

 

“A gente usa o equipamento de proteção hoje em dia, mas quando éramos mais novos tivemos os sintomas. Vômito, tontura, dor de cabeça”, relata a agricultora Rosane Ammon. Em pesquisa realizada em 2014 pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), identificou-se que 67% dos fumicultores entrevistados apresentavam os sintomas da doença da folha verde do tabaco.

 

Há mais de trinta anos trabalhando na produção de fumo, Silverio Christmann acredita que a preocupação com a doença e o uso dos equipamentos de proteção individual (EPIs) se intensificaram apenas nos últimos dez anos. Ele nunca se sentiu mal. “O corpo está bem”, garante.

 

 

veneno é veneno, né gente

 

Não é somente a doença da folha verde que representa danos à saúde dos trabalhadores. Segundo pesquisa do Instituto Nacional do Câncer (Inca), o uso elevado de agrotóxicos também traz consequências para os fumicultores, podendo causar intoxicação ao homem; além da água, solo e ar. Os mais utilizados são o Glifosato, herbicida largamente usado no Brasil para “capina química” e diversos inseticidas organofosforados. Dentre os principais  impactos ambientais decorrentes da fumicultura, está a contaminação do ar.

 

Roberto prepara o terreno com o trator para o próximo plantio

Uma vez que o veneno é pulverizado e carregado pelo ar, exige-se que a aplicação seja realizada em dias sem vento, como explica a produtora Joice Nagel.

 

De acordo com o Sindicato Interestadual da Indústria do Tabaco (SindiTabaco), ao longo dos anos foram feitos  investimentos pelas empresas em pesquisas para realizar a redução do uso de agrotóxicos. “Atualmente, o tabaco é a cultura comercial agrícola que menos utiliza agrotóxicos”, afirma o presidente do SindiTabaco, Iro Schünke.

Por outro lado, a procuradora Margaret Matos de Carvalho, do Ministério Público do Trabalho do Paraná (MPT/PR), afirma que a alegação de que o fumo usa menos veneno que outras culturas é “mentira”, e explica que não sabemos o quanto há de resíduos de veneno no fumo. “Tem um estudo da UFMT [Universidade Federal do Mato Grosso], que analisou dados do Paraná, afirmando que o fumo usa até 60 vezes mais veneno que outras culturas. É interessante observar que, ao contrário de alguns alimentos, o fumo não sofre análises de resíduos de agrotóxicos por órgãos estatais”, diz.

 

Além disso, a pesquisa da UFRGS também aponta que os organofosforados aumentam as chances de depressão dos agricultores: 20% de cem fumicultores entrevistados em 2014 sofriam de depressão. De acordo com o estudo, o quadro depressivo por exposição aos venenos, somado a outros fatores sociais, pode evoluir para o suicídio.

 

Nenhum dos agricultores entrevistados por esta reportagem associam os casos de suicídio na localidade com o uso de agrotóxicos nas lavouras de fumo, ainda que  sejam recorrentes.

 

“A gente até ouve histórias, mas não conheço ninguém”, afirma Joice. Somente em 2015 Santa Cruz do Sul, que tem cerca de 102 mil habitantes, registrou 10 casos de suicídio — na maioria de  agricultores —, a média brasileira é de 6 suicídios a cada 100 mil pessoas.

 

Jaqueline diz que nunca teve problemas com o agrotóxico

 

“Veneno é veneno, né gente. Tem que ter muita atenção. Mas, se tu não usa, tu não colhe”, explica a agricultora Jaqueline Assmann. A memória de algum conhecido que tenha passado por essa situação parecia distante para ela, até que a mãe traz a lembrança do “vizinho ali de cima”. Para Rosane e Roberto a frequência de notícias assim parecem ter diminuído, já que o último caso de suicídio “foi há um ano”.

 

Tem vez que é o vizinho, tem vez que é na própria família. Mais de uma vez.

 

Aos 21 anos, Diego Grasel ajuda o irmão mais velho a aplicar o veneno com uma máquina utilizada nas costas. Lidar com o produto tão próximo do corpo é motivo de preocupação, e aqui cuidado nunca é demais. Ele parece ser um dos poucos jovens que ainda se interessam pela fumicultura. Diego perdeu o pai quando era criança. Depois de apresentar um quadro depressivo grave, o agricultor cometeu suicídio. Na mesma família, são dois casos. Apesar de gostar da atividade que realiza, Diego diz que não quer a fumicultura pra vida toda e já divide seu tempo com um trabalho de serralheiro na cidade. Pois se trabalha muito, e quando não se ganha o bastante, a tristeza é grande. Vida dura é essa. Que é menos dureza quando rola um passeio de moto ou quando a distração é no videogame.

 

Diego acredita que os casos de suicídio tenham mais a ver com a falta de dinheiro do que com o agrotóxico

 

A procuradora Margaret, do Ministério Público do Trabalho, acompanha os efeitos do uso dos agrotóxicos entre os trabalhadores rurais desde 2008, especialmente na fumicultura. Ela confirma que muitos são os casos de suicídio entre produtores de fumo: “Isso se explica pelas péssimas condições de trabalho a que estão expostos, pela prolongada exposição a venenos e pelo modo como são tratados pelas indústrias.”

 

 

O SindiTabaco garante que as empresas prestam orientação técnica sobre segurança e saúde para os trabalhadores, além de realizarem o descarte correto das embalagens em conjunto com os produtores, para evitar problemas de saúde posteriores ao uso e de contaminação de solo e/ou água. Sobre as pesquisas que relacionam a exposição aos agrotóxicos com quadros depressivos, a entidade afirma que “o que realmente faz diferença para o produtor é a conscientização de que ele precisa se proteger”.

 

No entanto, com o período da colheita ocorrendo nos meses mais quentes do ano, o uso dos EPIs se torna um complicador por causa do calor e da máscara que dificulta a respiração. Apesar de confirmarem que utilizam a proteção, os agricultores reconhecem que há aqueles que não conseguem usar.

 

Os efeitos de longo prazo da exposição aos agrotóxicos e às substâncias presentes na folha verde ainda não estão claros, mas, segundo o Ministério da Saúde, podem aparecer problemas como o câncer e doenças cardíacas e pulmonares.

 

 

Equipamento de Proteção Individual (EPi):

jaleco de mangas longas e calças, com as partes brancas impermeáveis e as partes amarelas hidro-repelentes, avental impermeável, touca árabe (cobre toda a cabeça), viseira, botas emborrachadas, luvas de borracha nitrílica e máscara

 

Fumar é opção, plantar é sobrevivência

 

O Brasil é o segundo maior produtor de tabaco e o maior exportador mundial. A importância da cultura do fumo para a economia dessa região está no discurso e até mesmo no entusiasmo de quem planta e de quem consegue ter bons rendimentos econômicos com a atividade.

 

“Hoje o trabalho tá mais tranquilo. Antes era tudo a carro de boi, agora é tudo mecanizado, facilita”, diz Jaqueline. A agricultora Joice completa: “Tirando a época da colheita, o resto é tranquilo. Se eu quiser tirar uma manhã pra estudar com meu filho, eu tenho tempo livre no interior”.

 

Depois de seco, o fumo é amarrado em “bonecas” que vão para a prensa

Ainda que tenham que enfrentar os riscos dessa produção, os fumicultores mostram-se dedicados para que ela perdure, mesmo que acreditem que por pouco tempo. “Aos pouquinhos acho que a atividade tá terminando, porque os jovens estão indo procurar emprego na cidade”, sugere o produtor Roberto.

 

Se o futuro ainda é incerto, o que não deixa dúvidas para o pequeno produtor da agricultura familiar é de que o que rende em Monte Alverne é o fumo. O SindiTabaco, representante das empresas fumageiras, explica que a renda gerada ao produtor é o que garante sua permanência no campo e acaba incentivando-o a continuar a produzir tabaco. A entidade utiliza uma pesquisa de 2016, do Centro de Estudos em Administração da UFRGS, para  evidenciar o bom padrão socioeconômico dos produtores de tabaco. O estudo apresenta que enquanto 80,4% dos produtores de fumo enquadram-se nas classes A e B, a média geral brasileira não chega a 22%. “Dados como este demonstram que produzir tabaco não precisa ser incentivado, é uma questão de renda garantida”, afirma o presidente Iro Schünke.

 

As filhas de Rosane não pretendem continuar o trabalho no campo

Na região de Santa Cruz a cultura que vale para o sustento é o fumo

 

Mais uma vez, a procuradora Margaret do MPT/PR contesta: “As empresas são muito habilidosas em seduzir as famílias. Afirmam a elas que o fumo é a única alternativa de renda para pequenas propriedades, que nada será mais lucrativo do que o fumo. Quando o pequeno agricultor firma o primeiro contrato com a indústria do fumo, já assume um endividamento que pode perdurar por cinco a oito anos, tornando-o, desde logo, refém do sistema integrado”.

 

Embora as famílias plantem outras culturas, elas são apenas para o consumo próprio. E nessas, não é utilizado o agrotóxico. Para o agricultor Silverio Christmann, um sonho seria poder trabalhar com a produção do leite, já que não é necessário o uso de veneno. Mas sem o mesmo rendimento do fumo e com as dívidas, parece que o sonho fica longe. Já o jovem Diego consegue se imaginar trabalhando em um emprego fixo na cidade, conseguindo comprar aquilo que desejar.

 

 

A loucura da selva de pedra está bem longe dos anseios de Jaqueline e Joice, mas o casal Roberto e Rosane já vê nas filhas a busca por oportunidades na cidade grande, por algo que dê mais liberdade, e talvez mais segurança, se é que ela existe. Assim, para quem dedica a vida e o suor por uma cultura, a mudança parece ser dura. “Se um dia  o fumo terminar, essa região acaba”, diz Roberto.

 

 

 

Reportagem Gabrielle de Paula Fotos Yamini Benites Infografia Johannes Kolberg