Do outro lado das grades
Histórias de amor e sacrifícios de quem fica do lado de fora do presídio
Reportagem Vencedora: Direitos Humanos — Concurso da Mídia Alternativa do RS
As quatro linhas de ônibus que Jéssica Corrêa Simões, 21 anos, precisa utilizar para chegar ao seu destino final, tornam o caminho de Guaíba a Santa Maria longo e cansativo. O trajeto não é o mesmo feito por ela anos antes — quando criança, acompanhava sua mãe nas visitas ao pai, no Presídio Central, em Porto Alegre. A história hoje se repete. As lembranças são revividas na memória da jovem, que lamenta vivenciar a mesma situação da mãe. Diferentemente daquela época, Jéssica não tem condições de levar seus filhos, Lauren, de 3 anos, e os gêmeos de 1 ano e 6 meses para verem o pai, Anderson Dutra, 34 anos. Uma vez por mês, ela tem uma mudança na rotina e precisa deixar as crianças com a mãe para seguir viagem até o companheiro.
A ansiedade começa no sábado à tarde. A preparação é pensada nos mínimos detalhes.
Jéssica, que precisa cuidar dos três filhos pequenos, vê no tempo um inimigo. “A sensação é de que os dias não têm fim”, afirma ela. Uma calça legging florida e uma camiseta larga — emprestada pela avó. Essa foi a roupa escolhida para enfrentar 300 km de viagem até o destino final. Tempo suficiente para planejar e imaginar o que fazer durante as 7 horas de visita.
Além de roupas, ela carrega consigo, um pote com arroz, feijão, carne vermelha, e frango, além de produtos de higiene. Tudo para garantir que o companheiro, que ainda precisa cumprir cinco anos de pena, na Penitenciária Estadual de Santa Maria, no Distrito de Santo Antão, tenha conforto. A expectativa é de que as coisas durem uma semana.
Anderson cometeu o crime em 2010 e ficou recluso por cinco meses na época. Este ano quando estava com os colegas de trabalho, foi parado por policiais que verificaram se tratar de um foragido no grupo. Anderson costumava comparecer à Vara de Execuções Criminais (VEC) para confirmar que obtinha residência fixa e emprego, porém, segundo Jéssica: “quando ele foi lá em outubro, deu que ele já tinha cumprido as penas dele e deram o papel para ele fazer o CPF, o RG, o título, tudo direitinho”. Ele parou de comparecer.
Ele deveria cumprir pena em Porto Alegre, uma vez que fato e o processo ocorreram na Capital, mas há peculiaridades, como explica a mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS) e professora adjunta na UniRitter, Simone Schroeder. “Às vezes não há vagas onde ele quer ir. Por isso, as distribuições de presos dependem de onde está o processo, que deve estar onde o acusado está”.
Talvez o amor aconteça nos pequenos detalhes e nos pequenos gestos, ou então nos grandes sacrifícios. E, na pequena casa de cinco cômodos, alugada por Jéssica e seu marido, os desafios são diários. Sozinha, a jovem luta para manter, pelo menos, a comida e as fraldas para as crianças. “É bem difícil. Da minha família ninguém me ajuda. Às vezes minha mãe fica com as crianças para eu ir nas visitas, mas financeiramente eu sobrevivo com muito pouco”, lamenta.
“Porque hoje ele era um pai de família, ele era trabalhador, tinha largado as drogas, tudo. E isso é o que me dói mais”
Sem o marido em casa, a renda familiar passou de mais de um salário mínimo para R$ 117, valor concedido pelo Programa do Governo, Bolsa Família. Nas eleições, a jovem aproveitou para trabalhar nas campanhas. O pouco dinheiro que recebeu serviu para pagar os R$ 1.200 do aluguel atrasado dos últimos dois meses. Agora, ela tenta gerar uma renda vendendo produtos de revistas e roupas íntimas. No pouco que consegue faturar, ela tem o desafio de dividir entre seus filhos, a casa e as despesas do marido.
A quase 300 km de distância da família, Anderson lamenta à mulher a situação enfrentada por ela e os filhos. De acordo com a jovem, os momentos de dificuldades são diversos. “Às vezes não tem fralda, não tem leite, não tem comida e ele fica assim sem chão. Porque quando ele tava aqui, ele corria atrás, e sem ele não tem o que fazer.” O pouco que podemos encontrar nos armários da cozinha da humilde casa, no bairro Colina, vem da Assistência Social do Município, que de tempos em tempos realiza visitas a Jéssica e as crianças.
O acompanhamento faz parte do processo de assistência prestado pelo Município de Guaíba. Desde o nascimento dos gêmeos a jovem não consegue trabalhar em função das doenças dos filhos. Luis Gustavo e Douglas Raphael nasceram com Estenose da Junção Uretero-Piélica, estreitamento congênito no local onde ocorre a junção entre a pelve renal e o ureter. Porém, o caso de Douglas se desenvolveu de forma mais rápida.
“Não tem remédio e a médica já disse para mim que o caso dele só vai melhorar quando ele fizer a cirurgia, que é a correção que eles tiram o vasinho que tá entupido”, explica. Os casos de Estenose de JUP podem se agravar com o tempo, e em Porto Alegre apenas dois médicos cirurgiões podem operar as crianças nessas condições pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Jéssica aguarda na fila. Em meio a tantos problemas, preocupa-se ainda mais com Luis que sofre de Sopro no coração.
A prioridade da jovem, que ainda não completou o Ensino Médio, são os filhos pequenos. Em virtude dos problemas de saúde das crianças ela não consegue trabalho, pois não tem condições de pagar uma creche para eles, e no momento aguarda vagas em creches públicas. Anderson não é pai biológico da filha de Jéssica, Lauren Corrêa Simões, mas a menina o tem como pai, uma vez que não mantém contato afetivo com o genitor, que inclusive não costuma pagar pensão.
Jéssica conta sobre a mudança de sua rotina após seu marido ser preso na Penitenciária Estadual de Santa Maria.
Mesmo com todas as dificuldades, Jéssica tem esperança de que as coisas melhorem e faz planos. “Quero terminar meus estudos, e assim que sair nosso auxílio reclusão eu quero dar entrada numa casa com financiamento, e depois ir pagando que nem aluguel. Dou uma entrada e depois sigo pagando”, planeja. Nas visitas, o companheiro prefere não conversar sobre o futuro fora do cárcere, pois considera algo distante.
A jovem o incentiva para dias melhores e acredita que se ele pudesse trabalhar dentro do presídio o tempo de pena seria reduzido, mas a penitenciária não permite por não considerar uma pena longa.
“O trabalho nos presídios é possível no regime fechado e semiaberto e dá direito à remição. A cada três dias trabalhados, um dia de pena é reduzido. O problema é que o Estado não tem como oferecer trabalhos a todos, em função da superlotação carcerária”, esclarece a professora de Direito, Simone.
Mesmo destino: realidades diferentes
Duas vezes na semana, a comerciante Quelen Garcia, 32 anos, deixa a zona sul de Porto Alegre para ir ao encontro de seu marido, Diego Culpes, 28 anos, que também está encarcerado na PESM. Entre um atendimento e outro aos clientes do supermercado onde trabalha, Quelen pensa em qual roupa vestir, como deixar o cabelo e qual maquiagem fazer. “Deus que me livre meu marido me ver feia”, brinca.
Nos últimos quatro meses, a rotina das quintas-feiras e domingos está agitada. À meia-noite, o carro deve estar com gasolina e as bagagens no porta malas para seguir viagem. Atualmente, a madrugada tem sido parceira da comerciante, que encontra nos 300km entre a capital gaúcha e Santa Maria seu refúgio.
A preocupação com o marido é grande. De acordo com o Regulamento Geral de Visitas e Materiais, disponibilizado pela Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe), cada preso tem direito a receber cinco itens. Quelen carrega em suas sacolas um pote com carne vermelha, coração, frango, quatro pacotes de bolacha maria e quatro pacotes de bolos prontos. Os alimentos são uma forma de garantir que o companheiro se alimente bem até a próxima visita. “São sete homens em uma cela, muitos não recebem visitas, vou fazer o quê? Deixar ele passar fome?”, lembra. Além dos itens levados, Diego recebe da esposa cerca de R$ 100 caso algum imprevisto aconteça — na penitenciária há uma cantina administrada pelos detentos, na qual lanches podem ser comprados.
Diego ainda não foi julgado, mas a previsão é de que até novembro esteja em liberdade. Para enfrentar os meses com maior suporte, ela e a filha deixaram a casa própria do casal, para viver com os sogros. Assim, o peso em deixar a filha de sete anos por dois dias na semana se torna mais leve com a ajuda dos pais de seu companheiro.
Outro desafio enfrentado a cada visita, é encarar a fila para entrar na penitenciária. Quelen chega às 5 horas da madrugada, fica no carro até ás 8 e entra às 9. Na retirada das fichas ela diz se sentir intimidada por outras, pois os visitantes de outras cidades recebem preferência, o que gera muitas discussões por parte dos que são moradores de Santa Maria.
Além disso, Quelen ouve que “caso alguém não goste de ti, podem colocar produtos proibidos dentro da bolsa para incriminar na hora da vistoria”.
Situação prisional no País
De acordo com o último relatório do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça (Depen), estima-se que a população prisional brasileira ultrapassa 600 mil presos. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 11 anos a população brasileira cresceu 15%, enquanto a carcerária 140% no mesmo período.
Mesmo com o investimento de R$1,1 bilhão em infraestrutura e vagas, o sistema prisional sofre com a superlotação. No Rio Grande do Sul, o número de pessoas cumprindo penas em regime fechado, semiaberto e aberto chegou a 34.190. Segundo o Departamento de Segurança e Execução Penal da Superintendência de Serviços Penitenciários (Susepe), são 32.276 homens e 1.914 mulheres.
A Penitenciária Estadual de Santa Maria fica retirada do restante da cidade. Entre seus muros altos, estão 755 apenados que passam seus dias de reclusão ansiosos pela liberdade. Destes detentos, 246 têm suas parceiras aqui fora, muitas segurando as pontas com as responsabilidades deixadas pelos presidiários antes das grades da penitenciária.
Mesmo com os investimentos, as 96 unidades prisionais do Estado não auxiliam os presos com todos os materiais necessários. Fica a cargo das famílias levar alimentos, além de produtos de higiene, como sabão, prestobarba, desodorante. Apenas os que não recebem visitas recebem produtos do poder público. Em todas as visitas que Jéssica consegue ir, ela leva o essencial para o marido, que muitas vezes diz à companheira que não precisa, para que não gaste a mais. Em cada viagem são gastos cerca de R$ 200 com ônibus. Como precisa suprir as necessidades do marido, ela desembolsa de R$ 100 a R$ 200.
A família tem direito ao Auxílio-reclusão — destinado aos dependentes de presos que tenham contribuído regularmente ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e estejam respondendo em regime fechado ou semiaberto. Porém, os filhos do casal não são beneficiados, mesmo Anderson tendo contribuído com o INSS desde 2010.
Dedicação fora das grades
Na fila do presídio de Santa Maria, entre as centenas de pessoas que ali aguardam, Jéssica e Quelen compartilham da mesma angústia: rever os companheiros e ter de retornarem sozinhas para os filhos. Mesmo com os sacrifícios realizados, não pensam em desistir. E em cada nova visita sentem-se confortadas pelos parceiros.
O gesto de amor são todas as barreiras que é preciso enfrentar para levar ao outro o carinho, o bem estar e a esperança de momentos melhores. Enquanto uns estão em cárcere privado, outros se mantêm do lado de fora com sua autonomia limitada. Para as famílias, os presidiários são mais que dados, são preocupação, amor e conforto.
“Os guris ficaram um mês sem falar, antes eles falavam: papai, mamãe e algumas frases. Agora eles estão reaprendendo. A psicóloga explicou que a gente sente a falta entrando em depressão, brigando e xingando. Eles sentiram a falta ficando mudos, foi o jeito deles reagir. Eles tiveram doentes também, levei em vários médicos e ninguém sabia o que era, e era falta dele”, lembra Jéssica com os três filhos ao colo.
Reportagem e fotos Camila Emil, Évilin Matos e Gisele Barbosa