A emergência de aldear o futuro
Em Brasília, povos indígenas do Brasil decretam emergência climática e reivindicam a demarcação de seus territórios. Terra indígena no Rio Grande do Sul é uma das seis homologadas pelo governo federal.
Para os cientistas de todo o mundo, aqueles que investigam o aquecimento global, não há dúvidas: os impactos do clima nas pessoas e ecossistemas são mais severos do que se esperava. Para os povos indígenas, aqueles que enxergam o mundo com uma visão mais sábia, já se sente: a vida está cada vez mais ameaçada pela elevação de temperaturas e devastação das florestas e rios.
Há 19 anos, os povos originários organizam sua luta no Acampamento Terra Livre (ATL), em Brasília, no mês de abril. Neste ano, mais de 5 mil indígenas participaram e mais de 200 povos foram representados. Sob o sol seco sem sombras da capital federal, com os cheiros e sons fortes, em trajes e pintura de celebração e as centenas de câmeras fotográficas apontadas para seus rituais, os indígenas faziam o esforço de “sentar como os brancos” para ouvirem os seus representantes políticos falarem.
Ainda que muito pequena, é uma representação que nunca tiveram: Ministério dos Povos Indígenas, presidência da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), coordenação da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), e a Bancada do Cocar no Congresso. Resultado da busca por “aldear a política”, expressão cunhada pela ministra Sônia Guajajara no ATL de 2022.
É com ouvidos atentos e olhares de esperança para os seus representantes, que as comunidades acreditam que as demarcações dos territórios possam avançar pelo país. “O futuro é hoje, sem demarcação, não há democracia”, era o tema do acampamento. Ao mesmo tempo, a memória de um Brasil que exclui seus povos originários também se faz presente hoje. De acordo com Sônia Guajajara, já são sete medidas no Congresso, apresentadas pela oposição, que objetivam tirar as demarcações do Ministério dos Povos Indígenas.
“O povo está morrendo de conflitos [de terra]. Nós estamos do lado do povo, mas precisamos melhorar a estrutura da Funai”, afirma a presidente da fundação, Joenia Wapichana.
Assim, é com imensa luta para se inserir nas estruturas e demarcar as terras indígenas, que as lideranças buscam barrar a destruição do meio ambiente. A floresta ainda está viva e só vai morrer se os brancos insistirem em destruí-la. Se conseguirem, os rios vão desaparecer, as árvores vão murchar e as pedras vão rachar no calor. Se todos os seres vivos morrerem, o céu irá desabar, como diz o xamã yanomami, Davi Kopenawa.
O aquecimento global de 1,1°C, desencadeou mudanças no clima do planeta sem precedentes na história recente, concluiu o sexto Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), da Organização das Nações Unidas (ONU). Cada 0,5°C de aumento na temperatura global, por exemplo, causará aumentos visíveis na frequencia e severidade do calor extremo, tempestades e secas. “Somos nós que passamos por toda a violência e os impactos das mudanças climáticas”, afirma Juliana Kerexu, coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
Emergência climática. Foi preciso baixar a cabeça, descolonizar um pouco o pensamento, para poder reconhecer a própria ignorância diante de quem compreende o rio como direito humano.
“O rio é direito humano”, exclama a mulher Munduruku durante uma plenária com advogados indigenistas.
Garimpo. Poluição. Desmatamento. Tudo é emergência. A urgência pela vida de quem sente na pele a ação destruidora do homem sobre a natureza. Auricelia, indígena do povo Arapyum, no Pará, tem medo que a situação de seu povo possa chegar ao que chegou os parentes yanomami. “O rio Tapajós está contaminado, nossa alimentação está contaminada, as pessoas estão contaminadas de mercúrio. A gente toma banho no rio e a pele fica coçando. É totalmente diferente de quando eu era criança, que era um rio mais saudável”, conta.
Toya Manchineri, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), é do povo Manchineri, na fronteira do Acre com o Peru. Ele relata que o desmatamento na região Norte tem crescido a cada ano, devido ao avanço da soja. A luta contra a invasão de madereiros também é constante e representa o contraste de um Brasil que leva a floresta ao chão e um Brasil que resiste para mantê-la de pé. Segundo pesquisa da MapBiomas, nos últimos trinta anos, as terras indígenas perderam apenas 1% de sua área de vegetação nativa, enquanto nas áreas privadas a perda foi 20,6%.
Assim como tomba a floresta, tombam os corpos indígenas: “A gente sofre com a invasão nos nossos territórios e sofremos ameaças de traficantes internacionais e garimpeiros”, disse uma liderança do Vale do Javari, que não pode ser identificada por questão de segurança.
A região tem a maior concentração de povos isolados do país e ganhou visibilidade com a repercussão dos assassinatos do indigenista, Bruno Pereira; e do jornalista, Dom Phillips, em junho de 2022. Segundo a Polícia Federal, Rubén Dario da Silva Villar, conhecido como “Colômbia”, foi o mandante. Colômbia foi preso em dezembro do ano passado e é investigado por pesca ilegal e tráfico de drogas. Dois anos antes, Maxciel Pereira dos Santos, servidor da Funai, foi morto com dois tiros na cabeça em Tabatinga, cidade do Amazonas que faz fronteira com Colômbia e Peru.
Os holofotes diminuíram, mas as ameaças às comunidades se acenderam ainda mais, deixando os povos isolados cada vez mais vulneráveis à violência.
O desejo de L* é poder continuar viver em seu território, com acesso à saúde, à educação e à sua cultura alimentar. Sem ameaças à floresta e à sua própria vida.
TI Rio dos Índios é uma das seis áreas demarcadas pelo Governo
O último dia do ATL foi marcado por uma importante vitória para a mobilização indígena: o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) assinou os decretos de homologação de seis terras indígenas, durante a plenária de encerramento do encontro. As terras demarcadas e homologadas são: Arara do Rio Amônia (AC), Kariri-Xocó (AL), Rio dos Índios (RS), Tremembé da Barra do Mundaú (CE), Uneiuxi (AM) e Avá-Canoeiro (GO).
A TI Rio dos Índios fica localizada no município de Vicente Dutra (RS). Dias antes da homologação, a expressão tímida do cacique Kaingang, Luis Salvador, demonstrava a expectativa pelo reconhecimento de uma luta de mais de 20 anos pela área. “É importante nossa presença aqui para ser escutado”. Os 711 hectares têm sido disputados com agricultores e empresários, e já foi cenário de episódios de violência.
O deputado estadual Matheus Gomes (PSOL-RS) esteve no ATL e acompanha a situação dos Kaingangs. Ele acredita que a demarcação do território da comunidade de Vicente Dutra é uma medida democrática que também trará impacto positivo para a economia e o meio ambiente no Rio Grande do Sul. “Se trata de uma comunidade com histórico na construção de alternativas à monocultura e enfrentamento à expansão desordenada da fronteira agrícola. Dali a gente tem esperança que comece a florescer uma outra perspectiva diante da emergência climática que aflige nosso estado e diante das tentativas de impedir as demarcações, quando recorrem à tese do marco temporal, que não faz sentido, pois a ocupação indígena é milenar”, afirma.
RS: entre o asfalto e a cerca da fazenda
No Rio Grande do Sul, embora pouco divulgada, a cultura guarani é vista de mão em mão: o chimarrão é compartilhado em todas as cidades do estado. Mas, chama a atenção a desterritorialização dos povos Mbya Guarani, Kaingang, Charrua e Xokleng. A maioria da população não tem acesso à terra e mesmo onde há demarcação, ou áreas delimitadas, estas se encontram sob o domínio de terceiros, como apontou um relatório da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos (CCDH) da Assembleia Legislativa, em 2022. Mais de 30 comunidades vivem nas margens de rodovias, próximas a cercas de propriedades. A não demarcação dos territórios tradicionais é o principal gerador de exclusão, fome e marginalização.
Gasoda Surui, do povo Paeté, de Rondônia, explica que o desmatamento e a dificuldade da demarcação também agravam a insegurança alimentar das comunidades indígenas: “Quando acaba saindo pra cidade, perde a prática de roçado, de pesca. Os alimentos que tiramos da floresta são mais saudáveis que os da cidade”.
Enfrentar a catástrofe climática demanda um deslocamento real de escutar essa “gente que fica agarrada na terra”. Aldear as mentes, para que se tenha possibilidade de futuro. Para Gasoda, a esperança é contar com o apoio de todos nós:
“A natureza sempre foi importante para a vida indígena, o cuidado que nós temos com ela é muito importante, é dela que vem nossa alimentação, nossa medicina e nossa cultura. Cada área desmatada é tirada a nossa vida. Essa é a nossa riqueza”.
Reportagem: Gabrielle de Paula Fotos: Yamini Benites Vídeos: Bruno dos Anjos Infográfico: Johannes Kolberg