Quilombo: Terra em disputa
As ameaças históricas aos territórios quilombolas ganham mais um capítulo com o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3239/2004, que ameaça o direito à titularidade das terras de comunidades em todo Brasil. Foi com a primeira edição do Aspas, em quilombos urbanos de Porto Alegre, que a Anú encontrou histórias que não cabem na legislação do país

Era tarde quente do Novembro Negro de 2017 em Porto Alegre. Um pequeno grupo se concentrava na escadaria de entrada do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4). Dia de julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3239 (ADI 3239/2004), que ameaça o direito à titularidade dos territórios quilombolas em todo Brasil. Lígia da Silva, 62 anos, é moradora do Quilombo dos Silva, primeiro quilombo urbano titulado no país, em 2009. A comunidade, localizada em bairro de classe alta na Zona Norte de Porto Alegre, já sofreu repetidas ameaças de despejo. Todas elas aconteceram antes da titulação.
Lígia acompanha o andamento do processo sabendo que ele ameaça não só as 3.000 comunidades quilombolas que têm processo aberto no INCRA (órgão responsável pela regularização), mas também representa um risco às 220 comunidades que já possuem o título dos seus territórios. Segundo dados da Frente Quilombola no Rio Grande do Sul, em 2017 foi estimado em cerca de 6.000, o número de comunidades quilombolas que vivem na informalidade no Brasil.
O direito à titulação de territórios quilombolas e indígenas está previsto no artigo 68 da constituição de 1988. No entanto, a concretização deste direito é dificultada e burocratizada, passando por constantes discussões e disputas políticas e judiciais. É o caso da ADI 3239/2004, assinada pelo antigo PFL (Partido Frente Liberal), atual DEM (Democratas). O julgamento da Ação foi iniciado em 2012 pelo STF, e passou por etapas importantes em 2017. A próxima data, para o que deve ser a sessão decisiva, está marcada para o dia 8 de fevereiro de 2018.
As leis que ainda delimitam as terras pela posse individual, falham em contemplar a complexidade e riqueza da cultura quilombola. O reconhecimento do direito a territórios coletivos já é o suficiente para entrar em conflito com o pilar liberal da propriedade privada, que rege em grande parte a legislação brasileira no que diz respeito à demarcação de terras. No caso dos quilombolas, o referencial étnico-racial é um agravante. Medidas jurídicas muitas vezes falham em reconhecer a existência de uma carga histórica e cultural que marca também geograficamente territórios coletivos que são vitais a esses povos.

Lígia
— Quilombo dos Silva
“(As famílias) sabem. Eles tão tudo apreensivo. Eles sabem desse processo, que a coisa não tá boa. Porque se for votado contra, o primeiro que eles vão tirar vai ser nós, né. Porque a gente mora aqui, é só rico que mora em roda, né. Só nós de pobre aqui. Eles não vão deixar. Vão começar já por aqui, né.”
DESPEJO
“Foi 15 dias. Foi 15 dias com chuva. Foi o pior despejo que a gente teve. Porque eu já tinha saído pro serviço, que eu saio mais cedo, né. E a Preta, minha irmã, saía mais tarde. Aí, eu me lembro, eu tava botando, tinha um bolo no forno da Dona Mia, a minha patroa que faleceu agora. Vai fazer um mês ainda que faleceu, ela. E eu tava com o bolo no forno quando a Preta ligou que tinha o despejo. Eu só desliguei o forno e deixei um bilhete em cima da mesa, que tinha vindo pra casa, sabe.
Aí, cheguei aqui, esse pátio tava cheio de gente. Seriam os… Eles queriam nos tirar. Eram os… como é que eu digo? Oficial de justiça. Mas ele não era mais oficial de justiça. Ele já tinha se aposentado. Ele não tava trabalhando mais, sabe? Aí ele trouxe papelada para tirar as pessoas. Mas todas as pessoas que ele tinha no papel, ali, pra tirar, eram os meus irmãos que já tinham morrido.
Perguntava, cadê a Maria de Lourdes? Morreu.
A outra, Zeneide? É morta.
Luis Valdir?
Tudo, todas as pessoas que queria tirar, todas já tinham morrido, entende?
E não sabiam. Não sabia qual o terreno, pedaço que eles queriam, tu entende?
Não sabiam se era aqui, se era em cima. Não sabia qual que era.
Aí nós colocamos fogo ali em cima. Colocamos bastante pneu, né. Aí colocamos fogo. Aí chamaram os bombeiros. Os bombeiros apagaram o fogo. Aí nisso veio, chamaram a polícia. Veio a polícia. Ai, foi horrível menina. Horrível, horrível, horrível. Aquelas armas, assim, que eles ficam te apontando, assim. Parece que eles vão te atirar de um minuto pro outro, tu entende?
A coisa não andava menina, não andava. A gente dava graças a deus que chegava a noite. Seis horas não tinha despejo. Aí no outro dia começava aquilo tudo de novo. E tudo com chuva.
A Preta tinha um galpão ali, aquele galpão era com telhas de zinco. Aquelas telhas de zinco, tudo furada. Molhava as pessoas. As pessoas ficavam sentada assim, ó. Que nem eu tô aqui, que nem coruja, sabe? A noite toda. Pra ficar fazendo vigília pra eles não tirarem, sabe?
E daí o Incra tava todo atrapalhado. Porque o Incra só tinha, assim, ele só sabia tratar com quilombos rurais, e o nosso era o primeiro quilombo urbano. Então o Incra não sabia nem por onde ele começava, sabe? Aí o Incra pegou, fez um termo de posse. Que naquele tempo era o Rui, lá do Incra, que ele nem sabia se aquilo ia dar certo ou não ia dar certo, e ele assinou um termo de posse. Aí com aquele termo de posse, aí a gente foi ficando, ficando. Aí, que depois de quinze dias aquietou, sabe? Mas foi muito difícil.”
“Aí não pode, é área federal”
“Eles entravam com os cavalo. Então a gente tem os arame, assim, pra pôr roupa. E eles ficavam brabo que o cavalo pegava a cabeça. Os cavalo aqui, ó. Os cavalo faziam cocô por todo pátio. Aí não podia reclamar. Agora, menina, eles não entram mais.
É muito difícil virem por aqui. Porque, se tem algum brigadiano que não é daqui, que às vezes vai pra outro posto, né. Ele faz assim, ó, o outro quer entrar, “não, aí não pode entrar”. Eles fazem bem assim: “aí não pode”. Porque não pode. Porque eles tão proibido de entrar. Porque aqui é uma área quilombola, então aqui é só federal pra entrar. Eles pararam. Se tem outro brigadiano que não é da área que quer entrar, o outro faz assim “aí não pode”, aí se aquieta.”
VIZINHANÇA
“Não tinha banheiros, né. Tinha o banheiro da Preta, que era um banheiro comunitário grande. Daí nós ganhamos 12 banheiros da FUNASA. Aí quando a FUNASA veio, pra abrir o caminho, veio as máquina, veio os caminhão com o material. Isso aqui onde eu tô era tudo mato, né? Era tudo mato. Ali era mato, aqui tinha tudo árvore.
Aí veio as máquina pra abrir o caminho. Aí o condomínio gritava, ali do condomínio de cima, ali “Olha, vão levar a negrada embora! Vão levar a negrada embora!”. Que eles tavam vendo, que quando vem máquina, vem caminhão, é porque vai ter despejo, né. Mas não, eles tinham que entender que quando eles já chegaram aqui, nós já estávamos aqui.
Isso aqui, menina, é o metro quadrado mais caro de Porto Alegre, o bairro Três Figueiras. Aqui é muito caro, pra morar aqui. A gente tá aqui porque meus avôs chegaram aqui nos anos 40. Isso aqui tudo era mato. Sem completar que essas casas amarelas que eu falo, aqui, esse condomínio. Isso aqui era tudo, aqui tinha pé de bergamoteira, laranjeiras, aqui onde tão aqui hoje. Aí veio o condomínio.
Isso aqui era tudo mato. O único pavilhão do colégio, do Anchieta, que tinha, era só o pavilhão velho. O Farroupilha só tinha um pavilhão. A Nilo Peçanha, tu pode dizer assim que “ah, a senhora tá mentindo”, mas não. A Nilo Peçanha, os cavalo, porco, cachorro tudo desfilavam na Nilo Peçanha. Agora, pra ti atravessar a Nilo Peçanha, só na sinaleira, se não tu não atravessa. Ainda mais dia de semana.
Mas aqui é muito bom de morar, sabe? Porque eu nasci aqui, sabe? Agora, ano que vem eu vou fazer 62 anos. As minhas irmãs todas nasceram aqui. As minhas filhas nasceram aqui, meus netos nasceram, até meus bisnetos nasceram aqui agora. Tô com dois, com um casal de bisnetos, o Pedro e a Brenda.
Mas sabe que em 2006 eu tinha meu sobrinho pequeninho, que era o Gustavo. Eu dizia pra Rita, “Rita, o Gu não vai caminhar nessas terras. Não vai”. Porque, olha, tinha gente importante aqui dentro e a coisa não andava. Eles não viam uma brecha, assim, pra que a gente ficasse, sabe?”
“As crianças não podiam tá na praça que toda hora tinha um de braço levantado”
“Aí um dia a Preta tava em casa, a minha irmã, né. E o Lucas entrou, entrou as crianças “ah, prenderam o Lucas na praça”. Com dez anos. Mas era um baita de um guri. Aí a Preta correu pra lá ver o que é que tinha acontecido com o Lucas, né. Aí o brigadiano pegou, tava com o Lucas preso, e a Preta disse pra ele, “Mas ele é uma criança! Ele só tem 10 anos”. Aí o brigadiano respondeu pra Preta: “Criança também rouba”. A Preta disse, “mas o Lucas não rouba”.
Aí eu fui lá. Mas o brigadiano passou o pau em todo mundo. Deu na Preta, deu no Paulinho, deu na minha irmã que tava grávida, a Tina, perdeu a criança. Teve um aborto, apanhou. Eu não apanhei porque eu corri. Senão, tinha apanhado também.
Aí chamaram outra viatura. A gente pensou que a outra viatura vinha pra acalmar. A outra viatura passou pau em todo mundo. Aquilo já era poder de autoridade. Eles queriam mostrar que eles podiam. As crianças não podiam tá na praça que toda hora tinha um de braço levantado. Sempre tinha um de braço levantado.”

Giovana e Júlia
— Quilombo dos Silva
G: “Não. Eles não gostam de nós.
J: Só esses dali que sim.
G: Porque eles são racistas com nós. São racistas, chamam a polícia… Quando a gente liga o rádio, eles chamam a polícia. Eu acho que eles são racistas, porque eles não gostam de nós. E nós somos pretos, eles são brancos.
G: É onde que vive os negros, e vivia índio. Só tinha mato, tudo isso aqui. Aí veio um homem que descobriu aqui, aí veio todo mundo. Trouxe todo mundo pra cá. Todo mundo que mora aqui. As nossas mães vieram morar aqui desde pequena, aí depois elas casaram e teve nós.”

Fidélix
— Quilombo dos Fidélix
“Olha, preconceito. Preconceito a gente tem que levar a sério. É sério, isso. Então, onde seria. Antes era porque era Vila. E hoje, porque é quilombo. Então tu tem que conviver com esse tipo de pessoa que pensa que nós, nessa localidade, vai empobrecer o bairro. Ou, entre parênteses, vai enegrecer.
Então, se torna um bairro, assim, que a especulação imobiliária, ela quer. Mas não com nós morando ali. Mas tem, dois espigões ali, bem… com 20 andares, olha aí. Mas a gente não tem relações, né. A não ser com nós próprios, ali do entorno, ali. E outros vizinhos que têm a compreensão que a gente não é ladrão. Que a gente não tá ali pra, pra fazer mal a ninguém. Então a gente quer sobreviver como eles sobrevivem. Não do estilo deles, né. Nosso próprio estilo.”
“É o único lugar em Porto Alegre onde houve um despejo, as pessoas foram despejadas e depois de ser concretizado o despejo, dois, três meses depois, elas voltaram. Porque ali era uma área que estava em estudo, entendeu?
Essas pessoas voltaram em condições precárias. Precárias. A prefeitura deu um 2 por 2. Tapumes. Casa de tapumes, onde tu colocou uma geladeira e uma mesa e deu. Uma cama e não tinha mais nada. Hoje, tu vê só, as pessoas voltaram pro seu próprio lugar. Pro seu lugar de origem. E o que tá havendo? Está havendo que a gente agora, estamos no banco de réus de novo, né, com a ADI. Então estamos a mercê de começar tudo isso de novo.”

Josiel
— Quilombo do Machado
“Logo no início, nós não conhecemos. A gente não sabia o que era um quilombo. A gente sabia o que a gente aprendeu no colégio. Quilombo é um lugar onde os negros e os pobres iam se esconder dos ricos, né. É o que a gente sabia, né. Mas daí na verdade a gente foi tendo um conhecimento o que é o quilombo. Outros já conheciam, né. Mas que nem eu, pra mim foi uma novidade. E eu achei muito importante.
É porque assim, ó, tem muitas pessoas que entendem que quilombo é só lugar de negro. Por isso que tem muitas pessoas que não falam que são quilombola. Eu acho que é isso, entendeu. Mas na verdade, são pessoas que têm preconceito. Na verdade não é só lugar de negro, é lugar de quem tá aqui. Porque hoje em dia no Brasil não existe mais alemão, todo mundo tem antecedentes negros, ou veio do índio.
Tanto que hoje vivo do quilombo. Eu vivo do quilombo. Com a crise, não consegui mais emprego, entendeu. Aí eu montei tipo de um ferro velhozinho, de uma reciclagem que trabalha com lixo seco, na verdade, né. Tudo que é material de reciclável a gente recicla e revende. Desse ferro velho, aqui dentro da comunidade, vivem cinco famílias, entendeu. Todo mundo junto. Daqui é que eu tiro a minha renda hoje. Crio a minha família, tenho meus filhos. É assim que eu sobrevivo hoje.”

Marcos
— Quilombo do Machado
“Desde o começo. Desde que foi falada a palavra quilombo, ninguém procurou saber. Ir lá no dicionário e saber o que que era um quilombo. O porquê que existia quilombo. A primeira coisa, foram dar pedrada no quilombo. Ninguém nunca parou, agora que eles tão começando. É que também, a comunidade não conhecia, né.
O negócio do racismo, é triste o troço. Eles dizem que não existe, mas existe, sim. Existe e é velado. Eles podem dizer que não existe, mas eles não tratam a gente do mesmo jeito que eles tratavam o pessoal que mora naquela quadra ali, que tem asfalto. Porque a gente é pobre. Eles acham que todo pobre é vagabundo, não presta. Assim como todo negro é vagabundo, é drogado.
Nós ocupamos daquele lado lá, e não tinha água, não tinha luz, não tinha esgoto. Quer dizer, não tinha e não tem né. A gente fez o próprio esgoto da gente, que passa os canos aqui no meio, né. Procurou fazer o melhor possível aqui pra nós. A gente é um povo que trabalha e que é unido. Tudo a gente que faz, e faz junto pra todo mundo. Ninguém vem fazer nada aqui pra nós.
Agora tudo depende deles lá, de fevereiro. Muda tudo. Agora eles vão julgar lá, o marco temporal e tudo. A gente vai ter que brigar mais, né. Tem que provar que já tava em cima da terra há sei lá quantos anos. A gente depende disso. Eles vão ver as que já tinham feito demarcação. As que já tinham sido… como é que chama? Tituladas. As que tão com processo vai piorar, e as que já são tituladas também. É ruim tanto pra um quanto pro outro. Esse governo, ele quer voltar pro tempo da escravidão.”

Tamires
— Quilombo do Machado
“É aqui do lado né. A mãe do Jamaica mora no terreno aqui do lado, que é a Vila Respeito. E aqui, o pessoal todo brincava. O Jamaica brincava. Eles corriam, jogavam futebol. Eu morava mais lá pra baixo. Mas aqui é o território que eles viviam mesmo quando criança. E tem outros moradores de agora que também viviam nesse espaço, que tavam aqui. Então tem um sentido, tem uma lógica, esse espaço aqui.
A gente não vai viver naquela opressão de qualquer dia, qualquer momento ser jogado na rua. E a gente tem filho pra criar. A gente não tá aqui brincando de casinha, a gente quer morar. E resistir.
Meu filho, o Lucas, tinha um ano. Não, a festa de um ano a gente tava organizando. Ele tinha meses, então, quando ele veio pra cá. Aqui ele vive solto. Ele brinca, tá sempre cheio de crianças aqui. Ele ferve com as crianças, ele pode ir em qualquer lugar. Não tem esse medo, assim, sabe. E as outras mães sabem também, que podem deixar os filhos aqui, fica todo mundo bem. Se fosse em outro lugar não ia dar pra ser assim.
Tem o quilombo e a ocupação. Mas a gente luta junto por todas as famílias. No começo tinha essa divisão porque eles não entendiam, assim. Diziam que quilombo não tinha água, não tinha luz. Mas graças a deus a gente foi se esclarecendo e explicando pros moradores que não é assim.”
Reportagem e Fotos Yamini Benites