Gerações das três mulheres
De acordo com o Censo de 2022, apenas 4,3% do total de quilombolas do Brasil possuem titulação definitiva de suas terras. Dentre esse percentual, está o Quilombo do Campinho, o primeiro quilombo a conquistar reconhecimento oficial no estado do Rio de Janeiro. O quilombo é atravessado pelo protagonismo das mulheres desde a sua fundação. O Aspas da Anú destaca essas mulheres que, ao narrarem as suas vidas, apresentam a história do próprio território.

S ou quilombola, nascida e criada aqui no território do Campinho da Independência. Sou a 5ª geração das três mulheres.” É assim que se apresenta Daniele Elias Santos, mãe, jongueira e agricultora. As três mulheres a que Daniele se refere são Antonica, Marcelina e Luiza. Duas irmãs e uma prima que foram escravizadas no século XIX, ainda meninas, na então Fazenda da Independência. Depois do abandono da terra pelos senhores, os escravizados também foram deixados para trás, e as três mulheres fundaram o que hoje é o Quilombo Campinho da Independência, pertencente ao município de Paraty, RJ.
Como herança para a comunidade, deixaram não apenas a estrutura matriarcal, mas também a descendência direta: todos os 14 núcleos familiares são da linhagem de alguma das três pioneiras. Em torno de 700 pessoas vivem no território atualmente. A Dani, como é conhecida no Campinho, é da 5ª geração, e é a primeira mulher a presidir a Associação dos Moradores do Quilombo, a AMOQC.
O território fica em meio a uma fascinante e preservada Mata Atlântica, que hoje é atravessada pela rodovia Rio-Santos (BR-101). A abertura da via nos anos 70 marcou a memória coletiva da comunidade como o momento de maior medo e violência. Foi contra a especulação imobiliária, invasões de grileiros e outras ameaças que acompanharam o projeto da estrada que a comunidade iniciou a mobilização pelo reconhecimento do direito à terra que já era sua por herança ancestral. Após 30 anos de resistência, em 1999 o Campinho se tornou o primeiro quilombo oficialmente titulado no estado do Rio de Janeiro, e um dos primeiros do país.
O machismo estrutural da nossa sociedade não deixa de ser uma questão a ser enfrentada também dentro da comunidade. No entanto, a cada história contada, o protagonismo das mulheres ao longo das gerações é inegável, mesmo que às vezes possa incomodar. Cada relato apresenta referências carinhosas, às vezes até mesmo temidas, mas sempre respeitosas a uma avó, uma tia, uma mestra, uma parteira. Ana Claudia, mestra jongueira da comunidade, conta rindo: “A gente nem quer liderar, mas tá na genética”.
Daniele, 37
—Presidente da AMOQC, mãe, jongueira. agricultora | 5ª geração das 3 mulheres
“A gente vive em coletivo, né? É uma diferença que às vezes é difícil de explicar. Se você é uma preta, digamos assim, que você não é quilombola. Você pode viver na cidade, pode viver no campo, mas você é independente. Suas escolhas, seu modo de vida, sua maneira de pensar. São suas.
Eu sou quilombola. Eu vim daqui, eu tenho um território. Eu tenho um povo ancestral que nasceu antes de mim. Então eu já nasci com uma missão. Eu nem entendia isso antes. Eu nasci e cresci aqui e tal, mas com os meus 21 anos eu assentei aqui no quilombo e falei: “caraca, eu não tô aqui de bobeira?!”.
A gente brincava no quintal, “ah, tudo que o mestre mandar, faremos todos”, né? “Então vai lá pegar um galho de aroeira não sei onde” ou “vai lá pegar um galho de pitanga”. Uma brincadeira já era trazer o conhecimento do território, do quintal. Não era aleatório. Hoje eu olho pra trás e falo “caraca, a gente fazia umas brincadeira que faziam muito sentido”. Era conhecimento ancestral.”
AS PIONEIRAS
“A gente sabe que muitas das nossas ancestrais não tiveram essa oportunidade, né? Foram mortas, foram jogadas ao mar. Mas elas vieram. Chegaram de África muito pequenas, com seus dez, doze anos. Foram escravizadas, viveram horrores, até que os senhores abandonaram a terra e foram embora. Aí elas tiveram a oportunidade de contar sua própria história. E elas, ao invés de ficarem: “Tô ferrada, o que eu vou fazer aqui?” Elas disseram: “Não. Agora começa a história real!”.
Eu acho que a gente aqui herda isso. No nosso corpo. Eu sinto muito isso. Porque se eu for pensar, tem alguma liderança na minha família que despontou? Não. De onde que vem isso meu? Lógico que a organização comunitária que tem aqui no quilombo é muito forte. É uma luta pra guardar essa memória, essa ancestralidade. Mas eu tenho certeza que tem uma coisa aqui dentro mesmo que vem das três mulheres.”
MACHISMO
“O mundo é muito machista, né? O machismo impera. Só que eles estão tendo que nos engolir, porque a mulherada tá aí, tocando mesmo. É muito desafiador. Mas eles não têm mais muito pra onde correr. Agora, o machismo tá aí? Tá aí. A gente sente ele? Sente. Mas a gente tá nem aí pra ele também.
Quando a gente chega nos espaços com a cabeça erguida e fala o que tem que falar, é como se fosse uma ofensa, uma petulância. E aí você começa a ver os olhares. Quem ama, ama, mas quem odeia, também odeia mesmo. Porque é mulher preta e discutindo questões de muita relevância, eles não conseguem entender. Os homens e os brancos. Agora, os homens brancos, esses não conseguem entender mesmo!
“Uma mulher estar à frente da política, eu sei que é um choque ainda para as pessoas.”
A sociedade, ela é machista, então também é difícil para as pessoas me verem como a presidente da associação, mesmo aqui dentro. As pessoas às vezes não respeitam tanto, sabe? É uma surpresa ainda. Porque a mulher tá lá no restaurante, a mulher tá lá na casa de artesanato. Mas, uma mulher estar à frente da política, eu sei que é um choque ainda para as pessoas. Agora, eu tenho uma mulherada aqui em volta de mim, assim, que sustenta a coisa toda!
Eu peço muita sabedoria e muita proteção, né? Nossos ancestrais, nossos orixás, nossos guias, nossos mentores. Sou filha única do meu pai, e ele morre de medo de eu estar à frente dessas lutas. A questão que mais mata no Brasil é a questão territorial. Tem muita pressão. A gente perdeu Mãe Bernadete, a gente perdeu Marielle. Mas a gente vai continuar na luta. Não tem pra onde correr, né?”
TERRITÓRIO
“Aqui eles viveram tranquilos e felizes até a década de 70. Plantando, pescando, fazendo farinha, fazendo suas festas, seus modos de vida, em harmonia com a natureza. Vem a (rodovia) Rio-Santos e corta a comunidade ao meio. A gente está entre as maiores metrópoles do país, Rio e São Paulo. Um eixo no litoral único, incrível. Com a Mata Atlântica super preservada, porque nossos povos preservaram. Essa rodovia corta a comunidade ao meio e expõe a gente a tudo que passa aqui. A obra traz todo esse impacto no modo de vida do povo daqui, e também uma pressão econômica muito gigante.
Então começa uma luta por uma documentação pra provar que esse território era nosso. Por mais que a gente nascesse e crescesse aqui, a gente teve que provar que esse território era nosso. Imagina! Muitos homens tiveram que sair pra trabalhar em grandes embarcações de pesca no Rio. Outros foram pra Santos, a pé, oito dias, pra poder ganhar dinheiro e pagar advogado pra lutar pela terra.
Enquanto eles estavam fora, trabalhando pelo título, quem tava sustentando o território era a mulherada. Quem cuidava das crianças, quem cuidava dos bichos, quem cuidava das criações, quem cuidava do território, quem cuidava da lavoura, eram as mulheres. Depois de quase 30 anos de luta, o Campinho se torna o primeiro quilombo titulado do estado do Rio de Janeiro.”
Dilma, 69
—Artesã | 4ª geração das 3 mulheres
“As pessoas falavam que a gente ia ter que sair da terra. Não sabia pra onde que a gente ia. Talvez Ilha das Cobras, mas na época lá era tudo manguezal. Meu pai sofria muito. Os mais velhos, né? Eles sofriam muito por isso. A gente, mais novo, eu tinha de 12 pra 13 anos, a gente não tinha muita noção.
Eles tiveram que sair pra trabalhar em Santos. Cortar banana, vender, pra fazer usucapião. Pagar pra gente ter posse dessa terra onde a gente nasceu. E aí a minha mãe ficava em casa trabalhando na roça e a gente ajudando. Eu tinha que ficar fazendo os afazeres de casa pra minha mãe trabalhar na roça.
Vinha um homem, dizia que era filho do dono da terra, colocava a placa: “propriedade particular”. Os nossos mais velhos mandavam: “Quando eles botarem, vocês vão e tiram as placas!”. A gente ia lá e arrancava. Tirava aquelas placas, jogava fora, levava pra casa, queimava. Eles botavam de novo, a gente tirava. Saber que hoje a gente tá sossegado. Uma conquista, né? Foi a conquista da titulação da terra.”
ATENDER ÀS MÃES
“Precisava de umas pessoas da comunidade pra trabalhar na saúde, né? Pra ser agente comunitário de saúde. No meio dessas tantas pessoas, eu que escolheram. Aí fui pegando o gosto da coisa.
Eu queria fazer a parte mais difícil, sabe? Já queria meter o meu nariz onde não era chamada. Então o parto na maternidade, eu queria tá lá. Queria tá atendendo às mães, sabe? Eu não podia ver ninguém gritando que eu já ia lá ajudar. As pessoas pegaram mais confiança em mim, entendeu? Quando ela estava grávida, ela falava assim, “Dilma, vou mandar chamar você!”. E daí foi cada vez mais, virou sempre!”
Cirlene, 48
—Agricultora | 5ª geração das três mulheres
“Eu sou nascida na comunidade mesmo. Não nasci nem em Paraty, no hospital, eu nasci dentro da comunidade. Foi parto, né. A parteira daqui da comunidade que fez. A minha mãe sempre foi merendeira da escola, aqui no Campinho. Ela falou que trabalhou o dia inteiro na escola nesse dia e de repente sentiu aquela dor, né. Aí hoje eu tenho três madrinhas. Eu tenho a parteira, eu tenho a que me batizou mesmo, e eu tenho mais outra.”
A ROÇA
“Antes eu ia pra roça pra poder levar comida pro meu pai e pros meus irmãos, né. Era homem. A gente era mulher, ficava mais em casa. Hoje é diferente. Hoje em dia é a mulherada que tá indo pra roça. Mulher hoje não tem mais isso, sabe. Uma mulher vai pra roça até mais do que o marido, às vezes. Ou vai muito junto também. Eu, por exemplo, com meu marido, vamos sempre juntos. Então eu tô na roça quase todos os dias.
Amo roça, trabalhar na roça. Amo muito fazer horta. Tá ali no dia a dia, mexer com flores. É uma paixão na minha vida, tá mexendo com flores. Minha horta é cheia de flores. Cheia de tudo que você pode imaginar, mas as flores tem que estar ali no meio também.”
Geovana, 18
—Estudante | 6ª geração das três mulheres
“Pra mim (estudar na cidade) não foi bom não. Não gostei. Porque aqui todo mundo é amigo de todo mundo, tá perto de casa. A gente saía, ia pro Rio, ia fazer várias coisas. Na minha época ainda não tinha educação diferenciada, mas de uma certa forma já era diferenciada. A gente estudava o que a gente tinha aqui dentro da comunidade. Lá fora não tem, e eles querem enfiar outra coisa na nossa cabeça, que a gente sabe que é mentira.
A educação diferenciada é você aprender com a história da sua comunidade, com as coisas que você tem na sua comunidade, e as mulheres mais velhas também. Você aprende com pessoas da sua comunidade, na vivência das mais velhas também. É muito melhor, mil vezes melhor do que você aprender um livro que vai te ensinar uma história que não tem nada a ver com a história real.
“Lá fora vai ter professor que vai passar a mão na cabeça de um aluno que está sendo extremamente racista.”
Quando você cresce e vai pro mundo, você tem que bater de frente com muita coisa que na sua cabeça não existia. Todo mundo luta contra o racismo. Só que aqui é diferente. A gente até sabe, mas não vive isso na escola, aqui dentro. Lá fora a gente vai ter professor que vai passar a mão na cabeça de um aluno que está sendo extremamente racista. Na minha turma nem tinha pessoas negras! Na minha escola, nas duas que estudei, eu era a única negra da sala de aula. E na faculdade, é eu e mais uma, só.”
FUTURO
“Eu queria muito sair quando eu era menor, só que hoje eu não me vejo longe daqui, não. Me vejo sendo uma futura Dani, por exemplo, uma Laura. A gente vê muito elas como as mestras, né? A maioria, eu acho, é mulher. E elas que cuidam de tudo aqui. A gente não vê muito homem. E minha avó já falava desde antigamente, que era assim. É sempre mulher que teve à frente de tudo.”
Ana Cláudia, 48
—Mestra jongueira, artesã, agricultora | 5ª geração das três mulheres
“Eu sou a tia de todo mundo. Não queria ser tia, mas todo mundo me chama de tia. Eu falo: “Tudo bem. Abençoo.”. “Bença, tia?”, “Abençoo”. Porque foi assim que eu aprendi, assim que eu fui criada. Alguém sempre me abençoou. Mesmo no momento que eu fazia malcriação, me abençoaram. Então, é um elo de amor, né? Um elo de querer bem, de ensinar. Eu aprendi nesse formato e eduquei nesse formato.
A gente nem quer liderar, mas tá na genética. Se der brechinha pra gente poder dar um palpite, pitaco, naturalmente a gente vai. E as pessoas que querem aquela escuta, ou nem querem, mas elas escutam. “Cadinha já tem um pouquinho de experiência. Eu vou nesse caminho.”. E depois agradece.”
JONGO
“Na verdade o jongo aqui pra nossa comunidade é uma bandeira de luta. É um momento onde a gente quer reverenciar nossos antigos, quem deixou esse legado pra gente. Também é uma forma de resistência, de autoafirmar nossos conhecimentos ancestrais, né, através da dança. É um espaço educativo.
Antigamente a roda de jongo era usada como uma forma de dialogar. Para aquelas defesas que a gente queria, precisava na fazenda de escravos. Os escravizados não poderiam se comunicar entre eles, né? Não podia ter comunicação, só mão de obra, o trabalho e dormir. Então houve esse movimento das fazendas, do jongo, pra ter a comunicação entre os próprios escravizados. Dentro dos pontos codificados, que são as canções, falava o que queríamos dizer entre nós pra defender nosso povo, né? Uma estratégia de luta que a gente achou.
“A gente não pensa só em nós, dentro desses hectares de terra. A gente pensa a nível global”
E com esse conhecimento todo, hoje em dia a gente usa essa ferramenta como? Pra juventude. Pra se autoafirmar. Sou quilombola, sou preta. Sou negra, né? Cabelo crioula. Posso ser jongueira, artesã, posso ser o que quiser ser. É tudo um pertencimento. E quando tem, não precisa chamar, buscar. A juventude tá entendendo o que é essa bandeira de luta. Vem com sorriso no rosto. Vem com vontade de jongar, de compor.”
TEMPO DA ESCUTA
“A gente tem uma percepção enquanto pessoas da comunidade. A gente mora aqui, sim, em 297 hectares de terra. Mas a gente não pensa só em nós, dentro desses hectares de terra. A gente pensa a nível global, enquanto mundo. Comunidades dessas como a nossa podemos interferir na questão de educar o mundo, o planeta. Não estaria vivendo a questão do colapso, da mudança do meio ambiente. Aquecimento global, né? Estaria tão diferente. Desde que o mundo é mundo, os mais velhos já diziam: “Calma aí! Ali precisa respeito. Ali mexe, ali não mexe. Não pode!”.
Quem mora num território como nós, quem mora numa cidade… Realmente é muito diferente, né? Isso é o papel da escuta. Do tempo da escuta, sabe? O tempo do café na mesa com uma mais velha. O tempo de um chá na mesa com um mais velho. Conheço a cidade de fora. Os próprios vizinhos lá nem se conhecem! É cada um com seu individual. Não se preocupa com o individual do outro, né? É isso, o tempo da escuta.”
Reportagem e Fotos Yamini Benites