Não chove, não cresce, não dá fruto
Com agravamento da crise climática, povos indígenas já convivem com a insegurança alimentar

Sem nem precisar ouvir o final da pergunta sobre qual o impacto das mudanças climáticas nas terras indígenas, Taxá responde:
“A árvore não nasce, não cresce, não dá fruto, não vai ter nada” – diz a indígena da etnia Fulni-ô, de Pernambuco, apontando para uma árvore do Acampamento Terra Livre (ATL), em Brasília, evento anual onde indígenas protestam há 21 anos contra os ataques que recebem desde a invasão do Brasil e pelo direito à demarcação de suas terras. A resposta um tanto óbvia e alertada pelos povos originários há décadas, vem junto com a preocupação com a subsistência dos moradores e das terras indígenas do país, com o aumento do calor, do desmatamento e com a destruição das florestas pelos brancos e não-indígenas.
Um estudo deste ano do Instituto Socioambiental (ISA) aponta que as Terras Indígenas demarcadas nos biomas Caatinga, Mata Atlântica, Pampa e Pantanal continuam 31,5% mais preservadas do que as áreas ao redor. Segundo o mesmo estudo, 38,8% das TIs da Caatinga, por exemplo, tiveram ganho na relação entre regeneração e extinção. O MapBiomas aponta que, em 38 anos – de 1985 a 2023 -, as terras indígenas tiveram apenas 1% de sua vegetação perdida, enquanto, no mesmo período, a perda em áreas privadas foi de 28%. Esses números significam a recuperação da vegetação e a comprovação da eficácia das estratégias indígenas de manejo da terra.

Entidades que atuam em defesa dos povos indígenas, como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e a Fian – Organização pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas – também se mobilizam para garantir – ou, ao menos, diminuir – o impacto das mudanças climáticas no modo de vida e de produção das comunidades tradicionais.
Ailton Krenak, uma das principais lideranças indígenas do país, destacou em manifestações públicas que em 1976 já havia sido constatado que o mundo estava entrando em um caminho sem volta das mudanças climáticas. “É uma inteligência sensível de entender que tem coisas que precisam ficar estabilizadas no organismo da Terra. O colonialismo não entende fronteiras naturais, invade tudo furiosamente”, disse Krenak em entrevista ao Conectas, em setembro de 2021. O líder indígena Talico Kalapalo, do povo Kalapalo, habitantes do Parque Nacional do Xingu, no Mato Grosso, relata que, das 18 variedades de mandioca que aprendeu com os anciãos da sua terra, hoje só restam cinco ou seis. As mais afetadas são as ramas de mandioca específicas para o polvilho e para fazer caldo.
“Há cinco anos tudo morreu pelo calor. A gente não conseguiu plantar. Essas ramas de mandioca são fundamentais para o meu povo e para os 16 povos indígenas do Xingu. Para nossa única sobrevivência e para nossa alimentação”
– conta Talico, que tem no peixe, no mingau e na mandioca seus pratos preferidos. Na mesma entrevista ao Conectas, Krenak destacou que “(…) o simples modo de vida de um povo já promove a regulação de clima e a proteção da produção”.
Há quase uma década, em 2016, o Instituto Catitu Aldeia em Cena e o ISA produziram o documentário “Para onde foram as andorinhas?”, onde alguns indígenas do Parque Nacional do Xingu contam, em pouco mais de 20 minutos, sobre como o desmatamento, o calor e a produção de soja e milho fora da floresta prejudicam a manutenção da cultura e da alimentação local. Na época, os indígenas apontavam os efeitos climáticos nos pés de bananas e de caju, que ficavam pretos antes de estarem maduros. Nesse mesmo filme, algumas lideranças indígenas já mostravam a preocupação com a floresta não estar mais conseguindo combater o calor externo e como o fogo dos incêndios estava se alastrando mais facilmente.

O desmatamento, uma das principais causas para a perda da biodiversidade e da qualidade do ar e da água, além de aumentar a emissão dos gases do efeito estufa, registrou seu menor índice em 2023 e 2024, segundo dados levantados pela Imazon. Mesmo assim, os desmatamentos registrados nesse mesmo período em toda a Amazônia Legal ainda equivalem a um território maior que a cidade de São Paulo, a maior cidade da América Latina. Sendo as mais afetadas pelas mudanças climáticas, as populações indígenas são as que menos tiveram qualquer ligação com as mesmas.
Segundo o estudo do ISA, terras indígenas na Caatinga, por exemplo, têm 22,2% menos de degradação do que áreas fora das TIs, que registram 51% de mata devastada.
Em 2018, a Operação Amazônia Nativa lançou a publicação “Mudanças climáticas e percepção indígena”, com artigos assinados por pesquisadores, lideranças e integrantes de povos indígenas. As alterações na produção dos alimentos nas aldeias indígenas já era apontada como uma das principais consequências das mudanças climáticas. O calor é apontado por Taxá, 50 anos, como o mais prejudicial no sertão de Pernambuco, onde vivem as famílias dos Fulni-ô. Otacílio Filho, da mesma etnia, também cita a falta de chuva como danosa no manejo do milho, do feijão, da mandioca, da batata, da bananeira, e da palha de milho pro gado. “Até não vir a chuva, não dá pra fazer a plantação. Diminui muito sem chuva. Estamos na cidade de Águas Belas, mas o que falta é água mesmo” – conta Otacílio, também de 50 anos.
“O mundo tá diferente. A gente precisa comprar água pra sobreviver. Lá não temos rios, mas temos serras em volta, que são exploradas e aí a água não chega na nossa aldeia” – completa Taxá.
Na Bahia, a falta de água também é uma realidade – mas não só a da chuva. Cícera, de 51 anos, da aldeia Kariri Xocó, diz que seu povo ainda luta porque a terra onde vivem só lhes foi destinada há 10 anos e ainda precisa ser demarcada. “A gente precisa de água pra poder plantar, a água que a gente recebe é de caminhão pipa, potável. E só depois de usá-la, a gente usa na plantação” – detalha Cícera.
Recentemente, tiveram a primeira safra de manga – as demais não deram fruto por causa da falta de água. Cícera conta que há um projeto para trazer a água da nascente do Rio São Francisco da beirada do cânion e que poderá ser utilizada na plantação. Até lá, vão seguir com a pequena produção das 60 famílias, que plantam pimentão e coentro. Outros alimentos como a abóbora e o feijão de corda, que também não conseguem mais produzir pela falta de água, são comprados. Também da Bahia, do povo Pankararu, Maria, de 56 anos, relata que os indígenas, que já veem a produção de alimentos diminuir com as mudanças climáticas, passam fome também pela dificuldade de não terem garantido o direito à terra.
“Nós somos desaldeados, nossa terra é de compra e venda. Somos 70 índios, a aldeia mais sofrida é a nossa. Lá vivemos no sertão, a chuva chega atrasada. Quando tem arroz e feijão, nós conseguimos sobreviver, mas quando não tem, a gente passa fome mesmo, depende de ajuda. Aí os meninos fazem carvão, trabalham em outro lugar. A gente passa muita amargura” – conta Maria. Ela acrescenta que a maioria dos indígenas de seu povo é de população idosa e que o povo já recebeu cestas básicas, mas essa distribuição parou há cerca de três anos.

Em carta divulgada no final do ATL, no último dia 11/04, a APIB destaca que “as crises climática, ambiental, alimentar e civilizatória têm em nossos modos de vida, saberes e práticas tradicionais o caminho para a regeneração do planeta” e destaca a demarcação das terras indígenas como a primeira medida para esse caminho de preservação. “(…) Como uma política climática efetiva, e o financiamento direto para a proteção integral dos nossos territórios e nossos modos de vida. (…) Com sabedoria ancestral, articulação política e coragem histórica, o movimento indígena mostra ao mundo que não há saída para a crise climática sem a demarcação das terras indígenas.”, cita um dos trechos (leia a carta na íntegra aqui).
A Fian Brasil entregou ao Supremo Tribunal Federal no dia 07/04 um memorial referente à ADI que trata do marco temporal em que detalha que a produção de alimentos está no centro da identidade cultural e do modo de vida dos povos indígenas, além da garantia da segurança alimentar. No mesmo documento a organização reforça o posicionamento da APIB e diz que “(…) o reconhecimento e a proteção das terras tradicionais são centrais para a garantia do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas.”
“Daqui a alguns anos, meus filhos e meus netos vão assumir a minha liderança e é importante que a gente continue vivendo na nossa cultura, com a nossa alimentação. Resgatar, preservar e valorizar a nossa sobrevivência”- destaca Talico, do povo Kalapalo, do Xingu.
Reportagem e Fotos Juliana Almeida