A Maré por Marielle
O complexo de comunidades vai às ruas disputar a memória e a luta de uma de suas filhas
Não vão nos calar!”. A execução brutal de Marielle Franco*, no último dia 14 de março, deixou expostas algumas aberrações sociais: a difamação foi o recurso daqueles que gostariam que Marielle se calasse mesmo em vida.
Defensora dos Direitos Humanos, socialista, mulher negra, da favela, mãe e LGBT em uma relação estável com outra mulher, Marielle é/foi uma gigante ao encarar um processo eleitoral e um mandato (ou mandata) levantando tantas bandeiras marginalizadas. Sua posição crítica com relação à atuação policial na cidade do Rio de Janeiro não é recente. Ela fazia constantes denúncias que encaminhava publicamente sobre assassinatos e violências decorrentes da ação da polícia militar, do paramilitarismo, das milícias e de outros agentes do Estado – além do seu posicionamento abertamente contrário à intervenção militar na cidade – é hoje encarada como a mais provável motivação para o crime.
Por levantar essas bandeiras a voz de Marielle não se calou, mas se multiplicou em milhares numa onda de grandes protestos e homenagens no Rio de Janeiro e no mundo. Quanto mais perto de sua casa mais forte foi o grito de indignação. Marielle nasceu, cresceu e viveu boa parte de sua vida no Complexo da Maré, Zona Norte da cidade. No domingo do dia 18, aconteceu a manifestação mais potente pela vereadora e ativista dos Direitos Humanos: a Marcha Marielle Presente, Hoje e Sempre! Na Maré.
“Este ato é da FAVELA! Foi convocado PELA favela!”
Esse era o grito das vozes no carro de som antes mesmo de começar a caminhada. O anúncio era para os moradores, para as pessoas que observavam de longe. Durante o trajeto, sob o intenso sol da tarde, silêncios, falas fortemente emocionadas, gritos uníssonos. Cerca de cinco mil pessoas fecharam as vias das principais linhas expressas do Rio de Janeiro: Linha Amarela e Avenida Brasil.
Era importante esclarecer a importância daquela manifestação e a relevância política e social para aquela comunidade. O comunicador Josinaldo Medeiros, morador da Maré, é um dos colaboradores do canal de mídia comunitário Maré Vive. Ele nos explica um pouco essa questão do território:
“A Maré fica bem no meio das três principais vias expressas do Rio de Janeiro. Linha amarela, linha vermelha e Avenida Brasil. Nós somos vistos pelas pessoas, as pessoas sabem onde fica a Maré. Só que é um lugar a ser evitado, então fechar essas vias expressas causa um transtorno pro Rio de Janeiro muito grande. É uma forma de protesto que não é muito utilizada pela população e quando é, é tida como marginal, como algo mandado por bandidos, vândalos. Fechar a linha amarela e a Brasil nesse ato foi muito representativo por conta disso.”
Essa visão é partilhada pela pesquisadora Manaíra Carneiro, cineasta e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Cultura e Territorialidades da UFF, que pesquisa políticas de comunicação de favelas do Rio de Janeiro, especificamente da Maré, partindo de sua experiência e da vivência nas comunidades:
“Fechar as principais vias da cidade é chamar atenção de todos para as lutas históricas do Complexo da Maré, de outras favelas e da população preta que está sendo assassinada todos os dias. Essas lutas deveriam ser de todos os cidadãos que veem na vida em comunidade (em sociedade) uma forma de existência feliz. Então acredito que seja uma maneira eficaz de sensibilização daqueles que não moram lá, mas que também têm responsabilidade na execução de Marielle, Anderson, e de tantos outros. Se as pessoas morrem de forma banal, se há a banalização dessas mortes, a cidade deve ser parada para reflexão e responsabilização por elas. O mal não deve ser banalizado e ser integrado ao cenário urbano do Rio de Janeiro. Parar as vias significa dizer que devemos parar nossas rotinas, o fluxo de capital, enfim, parar a engrenagem porque a vida deve ser priorizada acima de tudo”.
Esta não a primeira vez que um grande protesto dos moradores da Maré impacta a cidade do Rio de Janeiro. As comunidades que ali se encontram possuem uma história de intensa luta política e resistência cotidiana.
Manaíra apresenta um pouco mais sobre esse processo de formação histórica e política do Complexo de Comunidades:
“Os moradores do complexo da Maré tem um intenso histórico de luta política e resistência desde a fundação de uma das suas primeiras comunidades, o morro do Timbau, que era uma das poucas localizações que tinha terra firme e era possível construir. Desde a década de 1950 existe, portanto, associações de moradores organizados para obtenção de melhorias em seu local de moradia. No entanto, essa luta cotidiana e histórica é muitas vezes invisibilizada pelo estereótipo dado aos favelados que diz que eles não são politizados ou que a política não os interessa. Há várias formas de luta cotidiana dentro das favelas que são invisibilizadas por não serem iguais aos dos movimentos políticos partidários. Há uma luta diária pela manutenção da vida, por todas as formas de vida, pelo aprimoramento de subjetividades, pela criação artística, pelo fortalecimento da rede de afeto, etc. Por isso, entendo que um ato político em torno do nome de Marielle contribui para dar visibilidade a todas as lutas históricas das 16 comunidades do Complexo e de dizer para as novas gerações que a luta continua mesmo que haja muito medo de represálias de todos os lados.”
Neste contexto, a eleição de Marielle ganha ainda mais significados. É intensamente marcante que uma moradora da favela entre no jogo político eleitoral e vença com mais de 46 mil votos espalhados por toda a cidade. Sua eleição apresentou uma nova cara para os engajamentos, as disputas e as lutas políticas historicamente invisibilizadas das favelas. Também por isso seu assassinato é tão violento e representativo, uma tentativa de silenciar, de segregar, de individualizar as lutas.
Josinaldo identifica as articulações de Marielle dentro da Maré como um dos principais legados da vereadora.
“O significado político e social do ato para Maré está baseado na afetividade. A Marielle circulava por diversos espaços da Maré, entre instituições privadas, ONGs, e pelos coletivos independentes. Ela tinha uma circulação muito boa e uma aceitação muito boa, de amplo diálogo. O ato da Maré representou essa união de todos esses atores que pela primeira vez em muitos anos se pautaram pela convergência e não pela divergência. Foi um ato de todos pra todos, foi muito representativo pra gente”.
Mais de cinco mil pessoas marcharam juntas no domingo. O histórico silenciamento da resistência negra e da favela foi contestado da melhor forma: com os gritos das mulheres negras das favelas cariocas, as únicas a se pronunciar no microfone do ato.
Discursos sobre a representatividade, sobre a resistência da mulher negra, a resistência da favela, foram contundentes. O resultado da atuação de Marielle, essa convergência pela afetividade, esteve nítido também na diversidade da manifestação, como aponta Josinaldo:
“Tinha muita gente da Maré. Mas tinha gente de outras favelas também. Tinha gente da Vila Kennedy, da Cidade de Deus, tinha galera do Complexo do Alemão, tinha gente de Acari, tinha gente do Jacaré, de Manguinhos, da Rocinha. Estava bem diverso o ato da Maré. E também tinha os artistas, tinha a burguesia folclórica, tinha a galera do bambolê, tinha tudo isso. E acho que era isso que a Marielle representava, ela representava diversidade. Ela representava a rua, ela tava circulando.”
Para Manaíra a diversidade da manifestação também é importante por uma questão de segurança. Os moradores das áreas ricas da cidade, da Zona Sul principalmente, carregam em seus corpos majoritariamente brancos o privilégio da segurança. A conscientização desse escudo simbólico, mas muito real quando se apresentam números de prisões e assassinatos, é vital para uma possível convergência na defesa das pautas levantadas por Marielle. Que essas pessoas saiam da Cinelândia, das áreas centrais onde ocorrem muitas manifestações, para as áreas mais periféricas é extremamente significativo, como destaca Manaíra.
“É importante que venham pessoas que não moram lá, pois como meu amigo Wagner Novais disse no domingo, é necessário que os brancos que fazem parte da elite utilizem sua imunidade branca em prol da vida dos pretos e favelados. Isso não significa um pedido de ajuda, isso quer dizer que eles podem contribuir desde que seja sob a direção dos favelados e pretos, não é uma questão de inversão de uma hierarquia, pois o interesse maior é que não haja qualquer tipo de hierarquia, mas sim de protagonismo. Muitas pessoas não podem aparecer em protestos ou fazer denúncias porque estão na linha de frente, podem ser assassinadas por motivos banais. Para os brancos ricos existe democracia e as leis funcionam a seu favor, então já que eles vivem numa democracia, que eles façam o que podem fazer. Por isso acho que a presença dessas pessoas foi bem vista, pois elas não tomaram a frente do movimento, nem se apropriaram dele para alcançar seus objetivos individuais. A todo momento na manifestação ficou claro que o protagonismo era das mulheres pretas e só elas tocaram o microfone, isso faz diferença para os movimentos de base dentro das favelas.”
“Por Marielle eu digo NÃO, eu digo NÃO à intervenção!”
Não bastasse a violência do assassinato de Marielle, ocorre depois de sua morte uma imediata tentativa de dominar a narrativa sobre sua vida. Reportagens, grandes condolências, declarações que tentam utilizar a execução da vereadora como uma justificativa para intensificar a presença militar e a violência nas periferias da cidade representam uma afronta ao legado dela.
O repúdio a essa cooptação da narrativa sobre a luta de Marielle e o significado de sua morte esteve presente em todas as manifestações da última semana. Na Maré, esse engajamento veio articulado com bandeiras já muito antigas dos moradores das favelas cariocas: a luta por uma nova constituição das forças policiais encarnada pelos gritos de “não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da polícia militar”. Josinaldo explica essa reivindicação:
“O fim da polícia militar quer dizer que a gente é a favor da desmilitarização. O que isso quer dizer? O que isso tem a ver? Historicamente a polícia foi feita pra garantir o direito dos ricos e da classe dominante. Ela nunca foi a favor dos pobres. E ela é treinada para uma guerra que não existe. Então quando ela entra no território que ela considera inimigo, qualquer morte está justificada. Nessa lógica de guerra não é um problema matar um inocente porque é efeito dessa guerra, mas não é isso que acontece na realidade. Não existe uma guerra dentro das favelas, existe massacre. A gente precisa estabelecer melhor os critérios de avaliação do que isso representa pra gente”.
Questionada sobre o risco de determinadas palavras de ordem em certos territórios, como o da Maré, a pesquisadora Manaíra defendeu a necessidade de pautar essa questão vital para os moradores, principalmente em uma grande manifestação que conta com a proteção da presença da mídia e de diferentes atores sociais.
“Intuo que o ato de gritar o desejo da desmilitarização da PM na Maré não acarrete tantas represálias quanto a afronta que é para a elite a existência de moradores felizes e com poder de compra. Um ótimo exemplo que ilustra o que estou dizendo é uma matéria do jornal Meia Hora recente que sem apurar, colocou em sua capa uma foto de crianças tomando banho de piscina na Nova Holanda e disse que a piscina foi financiada pelo tráfico de drogas. Na cabeça da elite é impossível que os moradores de lá pudessem comprar piscinas para as suas crianças. As denúncias contra crimes cometidos por policiais ou por traficantes atraem mais represálias, sem eufemismos, acarreta em mortes. Numa manifestação como a de domingo há a proteção da massa de pessoas e da mídia que estavam presentes, por isso pudemos expressar esses desejos com a força do coletivo. Por isso o coletivo é que faz a diferença, individualmente somos alvos fáceis.”
A força do coletivo é produzida nas articulações de pessoas como Marielle. É necessário reafirmar constantemente seu papel e sua importância para aqueles que ela sempre defendeu. Sua morte, que alguns tentam pacificar, é potente ao escancarar as desigualdades e a necessidade de uma costura coletiva pelo afeto. Sua postura declaradamente contra a intervenção militar não pode ser esquecida. Cria da Maré, Marielle sabia apontar para as violências e desconstruir o estereótipo da mulher favelada. Ela é/era em todos os sentidos, uma gigante.
*Para além das palavras noticiosas, reporteiras ou jornalísticas, uma ressalva: é muito difícil escrever sobre a execução de Marielle. Desde o dia 14 de março o ar ficou mais pesado no Rio de Janeiro. Algo que foi se espalhando pelo país, pelo mundo. É difícil elaborar qualquer coisa porque ela é/era uma mulher que transbordava qualquer tipo de classificação, enquadramento, estereótipo, definição. Mulher, negra, da favela, lgbt, socialista, militante, ativista, mãe, irmã, companheira, guerreira, e um sem fim de palavras mais. Tudo isso misturado, tudo isso na potência. Não é possível explicar Marielle.
Reportagem Natascha Castro Fotos Paiva Fotografias/ Felipe Paiva