Desassistência social?
Na segunda parte da reportagem "Gente à margem", as histórias de quem faz da rua sua moradia, frente a um cenário de preconceito e do desmonte da assistência social na cidade
M uitas vezes, o inverno rigoroso da capital porto-alegrense acaba incentivando a procura por albergues na cidade. As equipes de abordagem da Prefeitura também realizam mais buscas, mas ainda assim o interesse pela estrutura oferecida é pequeno. São muitas as queixas quanto às condições dos albergues em Porto Alegre, e a Fasc – Fundação de Assistência Social e Cidadania -, passa por diversas denúncias de corrupção e precarização.
“Quem não tem nada, tá fora do jogo, a gente não faz a máquina girar”
A rua é situação, acaso, azar. Destino momentâneo, reequilíbrio. Ou uma vida inteira, escolha própria e consciente. Os motivos são vários: está ali quem vem do interior e não encontra o procurado; quem vê no álcool alguma falsa solução; quem perde emprego e família e quase tudo; problemas de saúde mental; fuga da lgbtfobia.
No entanto, a desestrutura familiar aparece como ponto de partida em muitos dos relatos. Aos 7 anos de idade, Renata dos Santos (41) fugiu de casa por causa das brigas da mãe e do pai e acabou na Fundação de Atendimento Sócio-Educativo (antiga Febem). Aos 12 anos, já trabalhava em uma casa de família.
Com tamanha diversidade e maneiras de se acabar nos viadutos e praças, se dividem algumas categorias entre quem habita as ruas, e quem ensina é o Michel Vasconcelos:
1º) o Morador: aquele já há muito tempo na rua, que não quer saber de CentroPOP ou albergue, quer liberdade. Toma banho em torneiras e se vira pra comer; 2º) o Albergado: tem que conviver com muita regra, hora pra entrar e sair, fila longa pra conseguir vaga, monitores terceirizados autoritários: se levanta pra fazer cocô de madrugada é expulso, se reclamar do serviço é expulso, te cheiram pra ver se tem resquício de álcool, muitas vezes o banho é frio – e se não tomar banho é expulso também. E 3º) a Pessoa em Situação de Rua: questão momentânea, algum problema eventual, normalmente quem vem de fora, do interior, e tá se encontrando em meio a tanto desencontro.
O autor da categorização, Michel, tem 35 anos, 20 deles nas ruas e 15 atuando no jornal Boca de Rua. É ele quem traz os exemplos que deixam bastante claro por que ele e os companheiros não frequentam mais albergues.
De acordo com a Fasc, no Albergue Municipal, localizado no bairro Floresta, são disponibilizadas 120 vagas. Além da cama, são oferecidos banho quente e uma refeição. A entrada ocorre às 18h30 e é preciso sair às sete horas da manhã. Mas, segundo Michel, o banho é gelado ou fervendo, variável de chuveiro a chuveiro, “o rango frio” e os casais não podem ficar juntos.
Para Vera Ponzio, Diretora Técnica da Fasc, a regra do álcool ainda é um dos principais motivos para o morador de rua não ingressar nos albergues. Quanto às reclamações acerca do tempo para a saída, ela comenta que a extensão do horário já foi estudada, mas pelo custo não se justificaria. Em contrapartida, para muitos albergados, se o serviço oferecido fosse satisfatório, “dificilmente as pessoas optariam por passar as noites bebendo na rua”.
Para a vereadora Fernanda Melchionna (PSOL), que foi presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara por dois anos, há um colapso na política de assistência social na cidade. “Quando eu acompanhei a situação dos abrigos e albergues, encontramos uma série de problemas, desde a falta de vagas até maus tratos”, diz.
E há quem já tenha ouvido até relatos sobre o uso
de arma de choque pelos terceirizados.
Apenas uma das histórias macabras que deram ao albegue do bairro Floresta a alcunha de “Casinha do Inferno”. Michel ainda relata que no Municipal existe uma grade para se escorar enquanto se aguarda e ali acontece “um passa repassa de drogas e vez que outra tu tá escorado e vem até facada”. De acordo com Vera Ponzio, sempre que chegam denúncias sobre violações nos albegues, são abertas sindicâncias junto à Fasc.
Já para Deivid Duarte, morador do Viaduto da Borges, relatos de maus tratos contra moradores de rua e situações de preconceito não são apuradas porque a sociedade não liga para eles: “Quem não tem nada, tá fora do jogo, a gente não faz a máquina girar”, afirma.
Dessa forma, os albergados são poucos: e não poderia ser diferente, uma vez que, além das más condições, se somadas, as vagas disponíveis são 470, o que representa algo em torno de 20% do número de pessoas que habitam as ruas porto-alegrenses.
Apesar da demanda ser maior que as vagas ofertadas em albergues, para Vera é preciso pensar em outras alternativas: “A questão não é aumentar as vagas, não adianta fazer mais do mesmo, porque o nível de complexidade é enorme. Estamos pensando em projetos de moradias coletivas, onde os usuários administrem e os casais possam ficar juntos, por exemplo”. Porém, a própria Vera admite que não há previsão de mais investimentos na área, afinal a LOA (Lei Orçamentária Anual) já foi encaminhada para a Câmara e nenhum novo valor foi agregado.
Em termos mais práticos, uma ideia viável parece ser a de Diogo Macedo: e se a prefeitura distribuísse sacos térmicos de dormir? Pelo menos de frio ninguém morria. Às vezes é interessante ouvir as pessoas que sofrem na pele o que de dentro dos gabinetes tenta se resolver.
O Diogo vende Boca de Rua nas sinaleiras: 30 segundos de sinal vermelho e lá vai ele de jornal pra cima, oferecendo a motoristas a voz de quem é jamais ouvido. Dá para tirar de 70 a 120 reais por dia, ele conta, mas tem que começar cedo. Às 7h ele já está a postos na sinaleira próxima ao Barra Shopping. Entre um sinal vermelho e outro, acende um cigarro; trabalho não é tudo.
O dinheiro ele investe no futuro do filho Isaac; quer um terreno, um lugar pra família morar. O terreno que tinham, próximo à Avenida Tronco, perderam com as obras da Copa. E hoje o terreno segue lá parado, tão parado quanto as obras da Copa e o prometido aluguel social que nunca veio. A confusão aumentou quando Diogo entregou seus documentos para a Assistência Social e descobriu, com a demora, a importância da fotocópia: não se sabe onde a papelada foi parar.
Desmonte e corrupção na Fasc
Embora desmonte não seja a palavra ideal para algo desde sempre tão escasso quanto assistência social, é o que está ocorrendo em Porto Alegre. Neste ano, além da Fasc não ter recebido a verba anual do Governo Federal de cerca de R$ 16 milhões, no primeiro semestre, com o fim do convênio com a empresa Some (Sociedade Meridional de Educação), houve a saída de 110 profissionais dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS). “Tivemos uma redução de técnicos, educadores sociais e advogados. Mas agora com o novo convênio com o Instituto Calabria a situação se encaminha para a normalidade”, garante a diretora Vera Ponzio.
Em três anos, a redução de funcionários chegou a 52,4% e os aprovados no último concurso público ainda não foram chamados. Para piorar a situação, a rotina da Fundação é atravessada por sindicâncias que têm investigado diversas irregularidades, como o pagamento de serviços sem a certeza de que foram prestados pelas entidades conveniadas. Servidores calculam que, entre 2013 e 2017, podem ter sido desembolsados R$ 175 milhões por esses serviços não-comprovados.
Uma sindicância da Procuradoria-Geral do Município (PGM) também apurou irregularidades em 34 imóveis alugados pela Fasc. Foi identificado que os aluguéis foram firmados sem licitação, sem pesquisa de mercado e com a documentação incompleta. Neles, funcionam albergues e centros de atendimento à população de rua. “A gente vive sob suspeição. Mas tem que ser feita a averiguação que tiver que fazer”, afirma Vera.
Devido a todas as denúncias, a vereadora Fernanda Melchionna protocolou pedido de instauração de CPI na Câmara de Vereadores. Até o momento apenas 7 parlamentares, os que compõem a oposição, assinaram o documento. O PP (Partido Progressista), partido envolvido nas denúncias de irregularidades, segue na base aliada da Prefeitura e o avanço da investigação está travado.
Para reduzir os custos, a atual gestão municipal optou por integrar diversas secretarias de áreas sociais em uma única pasta, entre elas a de Direitos Humanos, que hoje funciona como diretoria. Assim, na Secretaria de Desenvolvimento Social e Esporte, os servidores também precisam se desdobrar para atender a todas as demandas que chegam. Cabe à diretoria de Direitos Humanos assessorar o Comitê Gestor que representa os direitos da população em situação de rua em Porto Alegre.
O Comitê, criado em 2015, ainda passa por reformulações em seus métodos, estrutura e participantes. Nas reuniões do grupo, os representantes dos moradores de rua têm acesso às ações de governo para os próximos anos, bem como ao Plano Plurianual (plano que estabelece as diretrizes da administração pública). O avanço, com o Comitê, está em traduzir as ações e discuti-las diretamente com a população de rua – essa é ao menos a leitura que faz Jacqueline Kalakun, diretora de Direitos Humanos desde julho deste ano.
Apesar do Plurianual prever um orçamento de R$ 242 milhões para o programa Porto Alegre Para Todos, Jacqueline explica que todos os programas envolvem a população em geral, não havendo cotas para a população de rua. Dentro do Plurianual, inclusive, uma das metas é “Oportunizar alternativas de emancipação a 100% da população em situação de rua no município de Porto Alegre”. Percentual questionado pelos moradores de rua e reconhecida a dificuldade pela própria diretora de Direitos Humanos.
Em meio às burocracias do poder público e às investigações na Fasc, está a população em situação de rua, prejudicada com a falta de recursos. Renata que mora em um dos canteiros próximos à Avenida Erico Verissimo, conta que no último período as filas nos CRAS estavam enormes: “Também estão sem ajuda para a passagem, então não consegui ir na Previdência rever os papeis da minha perícia sobre o atropelamento”.
Para Cleiton Rodrigues (27), a conta é simples, não importa quem esteja no governo: “Hoje o prefeito é o Marchezan, amanhã não sei, não faz diferença. Enquanto eu tiver na rua, vai ser sempre ruim”.
Mães-de-rua
Mãe de sete filhos, Renata dos Santos não aceitou morar com a filha mais velha, pois não tem boa relação com o genro. Hoje, divide uma barraca com o companheiro, e brigas ainda fazem parte da rotina. “Eu fico com ele, porque ser mulher na rua é difícil, ele me protege”.
Angélica Souza (28), sabe bem a dificuldade de ser mulher e viver na rua desde os 11 anos. Depois de ser abandonada pela família, ela se envolveu com o tráfico de drogas e foi presa. Mas os traumas e as dores não pararam por aí. Angélica foi vítima de violência sexual por mais de uma vez na rua: “Se tem um medo que eu tenho, é ser estuprada de novo, é coisa horrível”.
É quase que outra dimensão: paradoxos difíceis de se entender, como o estranho caso das moradoras de rua que engravidam mas não conseguem ter filhos mesmo ao ter um. Não são poucos os relatos de que assim que os bebês pulam do ventre das mães, são entregues a outros braços. Angélica se emociona ao lembrar do dia em que acordou no hospital já sem o filho. “Nunca assinei nada, levaram ele de mim”.
Ao braço magro e recorrentemente negro da mãe-de-rua é negada a nova vida, surgida exatamente dela. À nova vida é negada a mãe, como se morar na rua impedisse o amor-de-mãe de prevalecer, e aos filhos-sem-amor que habitam tetos de gesso e mármore parece nunca haver tamanha fiscalização, bastando-lhes o dinheiro. Comprovante de residência, endereço fixo, antecedentes, pedem. E aí pra manter filhas e filhos por perto muitas vezes a solução é fugir do hospital, dos exames, dos homens de jaleco e das luzes brancas.
Vera Ponzio, da Fasc, reconhece que faltam ações específicas para as gestantes, mas afirma que os casos em que as moradoras de rua têm seus filhos retirados, são somente determinados por via judicial.
Por outro lado, também foi na rua que Angélica encontrou acolhimento, principalmente depois de entrar para o jornal Boca de Rua, do qual faz parte há um ano: “As pessoas estranhas da rua se tornaram a minha família”, diz. Já Cleiton encontrou o amor através de seus cachorros: “Bah, cachorro é bom demais. Às vezes, tu pode tá triste, mas só de ele vim perto tu já abre um sorriso”. A presença afetiva dos cães também ajudou Cleiton a parar de beber, mesmo que tenha que vencer a vontade de ingerir álcool frequentemente.
A luta é dura e diária, e quando bate o frio e bate a fome e a solidão ou o desespero crescem, a droga é sempre uma saída rápida e indolor, ao menos naquele momento. É contraditório, mas o que mata é também o que faz viver. O loló, a cachaça, o baseado, o que vier. Nada que dê orgulho; algo que faça passar mais uma noite e mais um dia e assim por diante. Dia a mais, dia a menos. “Sinto falta dos meus filhos, mas assim não dá pra ficar com eles”, diz Débora Oliveira (27), moradora do Viaduto da Borges.
Diante dos olhos e da indiferença
Em novembro a coisa esquenta, o calor que derrete até asfalto encontra ápice em dezembro e janeiro e fevereiro e mesmo fazendo explodir a pele em suor, ainda assim não é pior que o frio úmido e a chuva dos meses do meio. Ano Novo na rua é em agosto, virada dos sobreviventes da sobrevida diária.
Alheio à realidade das ruas, na noite mais fria do ano o prefeito Nelson Marchezan Jr. (PSDB) fez uma insensível postagem nas redes sociais, brincando que um “white walker” — zumbi que habita as regiões geladas na série Game of Thrones – caminhava pelo viaduto da Borges. Na mesma noite, um morador de rua faleceu devido à queda vertiginosa nas temperaturas.
A repercussão negativa da postagem do prefeito e a percepção do aumento do número de pessoas vivendo na rua fez com que os gestos de solidariedade aumentassem na cidade. Adilio Andrades , morador da rótula do Papa, conta que tem feito mais “bicos” na feira de hortaliças que acontece todas às quartas próximo ao Olímpico.
No centro, de acordo com a diretora Vera Ponzio, além das abordagens sistemáticas dos grupos conveniados à Fasc, diversas ONGs têm atuado oferecendo banho, refeições e cobertores. Contudo, Renata alerta que sempre que o assunto ganha visibilidade, o risco de remoções aumenta.
“No Natal e no Ano Novo é quando as pessoas mais nos dão coisas. Mas, aí vem a Prefeitura e leva tudo”, relembra Adilio.
Viver na rua é estar à margem de direitos e estar à margem do cotidiano da cidade, ao mesmo tempo em que se é exatamente este cotidiano, ou ao menos a sua paisagem. Paisagem que toma conta sem que sempre nos demos conta dela: pessoas espalhadas pelas ruas sujas, atrás de doações, de comida, de afeto, de teto. De um jeito de continuar.
E isso As Pessoas de Gabinete nunca entenderão sobre As Pessoas de Rua: ainda que estar ali não seja exatamente uma opção, não significa necessariamente uma maldição, e tem noites que o céu está tão estrelado que é quase azar de quem tem um teto sobre a cabeça.
Deivid, que hoje sobrevive no Viaduto Otávio Rocha, diz que a indiferença ainda é o que mais incomoda. O não ver proposital ou, quando os olhos se encontram, o julgamento – “Aquele olhar que olha pra condição da tua roupa e acha que sabe tudo de ti”, diz.
Reportagem Arthur Viana e Gabrielle de Paula Fotos Yamini Benites Infográfico Johannes Kolberg