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Os gritos de Elza Soares

Uma cantora capaz de tocar feridas por coragem, por acreditar na própria liberdade

Foto: Yamini Benites/Anú

A voz que ecoa no fim do mundo vem do Planeta Fome: mulher, negra, periférica, carioca. Elza Soares veio de lá há 79 anos. Sua voz retunda e ecoa com mensagens importantes.

 

Uma cantora capaz de tocar feridas por coragem, por acreditar na própria liberdade. Ela se renova a cada trabalho e vem com o disco A Mulher do Fim do Mundo gritando novas palavras e lutando pelo fim dos horrores que viveu e ouviu.

 

Renome nacional que acumula grandes sucessos, Elza retorna com um disco atemporal que dialoga com públicos variados e, como nos seus melhores trabalhos, rima com as temáticas mais importantes para a juventude que hoje pensa, a partir de uma arte política, sua realidade.

 

Com letras marcantes como as das músicas Maria da Vila Matilde, Benedita, Luz Vermelha e A Mulher do Fim do Mundo, o novo trabalho é resultado de uma parceria com jovens compositores da cena musical paulista como Guilherme Kastrup, Rodrigo Campos, Kiko Dinucci, Romulo Fróes, Marcelo Cabral e Celso Sim.

 

Anú conversou com a cantora no Rio de Janeiro sobre a carreira artística, a identidade feminina negra, o papel político da arte e suas repercussões como a censura e a liberdade.

 

Que fim do mundo é esse da mulher do fim do mundo?

É um mundo que não tem fim. É o mundo em que vivemos. Cheio de tortura, cheio de dores. Então a mulher do fim do mundo queria ver uma realização, queria ver as mulheres mais unidas, que os preconceitos absurdos que existem acabassem. Homofobia, que preconceito absurdo, tinha que acabar com essa coisa. Deixa o mundo livre! Deixa as pessoas livres pra viverem a vida delas. Você tem o direito de ficar comigo, mas tem que vestir isso e aquilo, “isso não sou eu”, você tem que fazer isso e aquilo, “isso não sou eu!”. Cada um faz aquilo que quer. Desde que não seja prejudicial, cada um tem liberdade de fazer o que quer, sem existir nada que possa se intrometer na vida dos outros.

 

Você tem acompanhado as manifestações das mulheres nos últimos meses contra a homofobia, contra o racismo, contra todos esses preconceitos que parecem crescer. Seu disco parece dialogar muito com essas causas, seria como um manifesto?

É lógico. Eu acho maravilhoso, tem mais é que gritar mesmo. Tem que dizer “para com isso!”, “para com isso!”, dizer “Eu paro com isso”, “Eu paro com isso!” também. De repente ninguém sabe quem você é e o que você faz, não tem nada melhor do que poder dizer, “Fulano, para com isso”, “Sicrano, para com isso, isso é homofobia, é preconceito”. É ótimo poder falar isso.

 

Você acha então que a mulher tem que gritar, sair pra rua, lutar pelo feminismo? Isso é uma coisa recente pra você?

Não, toda vida eu trabalhei com isso. Meu trabalho sempre foi esse, trabalhar contra a homofobia, contra o preconceito que eu sei que eu vivo. A gente tem que parar, tem que gritar mesmo. Até a luta ganhar. O mundo se acabou, então vamos gritar.

 

Foto: Stéphane Munnier / Baobá-Brasil

Seu último trabalho repercutiu muito num público mais jovem. Por que você acha que isso aconteceu agora?

Eu já venho com um público jovem há muito tempo. Agora teve um crescimento maravilhoso. Um disco tem o poder de fazer isso, basta você fazer um trabalho direito, um trabalho sério, um trabalho com dignidade que acontece isso. Este trabalho foi feito com muito carinho, com muito cuidado. Foi muito bem elaborado pra que ele saísse um trabalho digno de elogios e respeito e justamente ele tem tudo isso.

 

Tem referências muito contemporâneas na musicalidade do disco. Tem algum artista contemporâneo que influencie você?

Pra falar a verdade não. Agora, eu fico muito feliz com a espontaneidade das pessoas, fico muito feliz e muito alegre, porque se eu pudesse juntava todo mundo numa união só. Um união de felicidade. Eu tenho que agradecer muito a esse povo, essa gente que faz isso por mim.

 

Na sua carreira você tem tratado de temas fortes e também delicados, como o racismo, a violência doméstica, e mais recentemente sobre a questão da mulher trans em uma música muito bonita, “Benedita”. Você acha que o artista deve falar sobre os temas atuais, que são polêmicos e sensíveis, você acha que essa é uma obrigação do artista?

Eu acho que se tem liberdade e tem um microfone na mão sim. Porque quem tem um microfone na mão tem a possibilidade de falar. Eu acho que não pode perder a oportunidade, vamos falar. Vamos gritar. Eu acho que todo mundo podia gritar.

 

E por que você acha que não é tão fácil encontrar trabalhos com esse teor, com essa força? Se você acha que não é tão fácil…

É o seguinte, todo mundo se acomoda. Isso aqui tá dando certo então é nessa que eu vou ficar. A minha ousadia… Poucas pessoas querem fazer isso, se arriscar. Eu não tenho medo de me arriscar, então eu vou. Mas é aquela coisa, você não pode dizer “tem que fazer isso”. Você faz o que quiser. Não é verdade?

 

Você acha que o fato de historicamente não ter tido grandes patrocinadores ajudou a falar o que você quisesse, a gritar com sua voz sua verdade?

Eu acho que sou dona da minha liberdade. Sem correntes, sem nada disso segurando minhas pernas, eu tenho os braços livres e posso falar.

 

Na sua primeira apresentação no programa do Ari Barroso, uma história clássica sua, você disse que vinha do Planeta Fome. Você acha que esse Planeta Fome ainda existe para negros, para os pobres?

Existe. Existe sim, lógico. Hoje não é só pra negros e pobres, é pra todo mundo. Estamos vivendo uma situação terrível, todo mundo passando por sufoco, não é só para o negro nem para a mulher, é para todo mundo. Tá todo mundo passando por um sufoco muito grande. É triste isso, um país tão maravilhoso passando por tantas desavenças.

 

Mas você acha que o Planeta Fome de agora é diferente daquele de sua época?

Tem diferença não, o Planeta continua sendo o mesmo. Por isso que a gente milita. Continua sendo o mesmo, tem algumas coisinhas pra enganar. Casa, filho, parece que tá tudo bem, você abre o guarda-chuva e cai um trovão na sua cabeça. É só pra enganar, “ó, enganei neném, enganei neném!”, coisa de criança.

 

E como você vê os artistas que hoje têm saído desse Planeta Fome, do Funk, do Hip Hop, você acompanha?

Eu acompanho todo mundo. Eu acho que a música não pode ser só minha. Eu acho que o espetáculo não pode ser só o meu. Quem tiver espetáculo pra fazer, que faça. Tem liberdade, não é?

 

Falando de liberdade, você aborda bastante a questão da sexualidade também. Como você vê a repercussão ao viver e tratar da sexualidade de mulheres mais velhas, os homens não sofrem muito com isso, mas para as mulheres…

Sim, a mulher não, a mulher que fizer isso… É uma crítica, coitada! Mas eu não ligo pra crítica. Você tem a liberdade pra fazer o que quiser. Isso é liberdade. Então vou censurar todo mundo que critica? Não. Não estou censurando nem sofrendo censura. Quero liberdade, quero fazer o que eu quiser fazer, me deixem em paz.

 

Você acha que hoje a mulher negra tem mais espaço, tem mais voz?

Eu acho que a mulher em geral tem mais espaço. A mulher. A negra pode gritar também. Então acho que a mulher tá tendo um pouco mais de liberdade, seja negra, seja branca, qualquer uma.

 

Você tem muitas referências femininas na sua vida pessoal e profissional? Mulheres que você admira, que tenham marcado você.

Sim, eu ontem fiquei muito feliz, eu vi uma menina, brasileira, ser campeã do mundo de skate. Fiquei maravilhada, esqueci o nome dela agora (Elza se refere à skatista brasileira Letícia Bufoni). Maravilhosa, campeã do mundo! Do mundo, skatista. Já é uma coisa muito maravilhosa. A Flavia Maria também me deixa muito feliz, é uma negra chave, inteligente, muito bom. Existem grandes mulheres que eu admiro crescendo aí, é uma maravilha.

 

Você acha que existe uma cultura de dividir, segregar mesmo, as mulheres? Você já chegou a comentar em outras entrevistas que quando começou a namorar o Garrincha as mulheres condenavam você…

Muito! Muito mesmo. Mas eu já expliquei, eu não ligo pra condenação. Não ligo pra nada disso. Eu vou seguir minha vida, não estou prejudicando ninguém. Não quero ser prejudicada também, lógico.

 

Na questão específica da mulher trans, caracterizada na música Benedita. Por que você escolheu essa música, e por que tratar dessa temática?

A Benedita é maravilhosa! Ma-ra-vi-lho-sa. Fala da sexualidade, do homossexual, fala de drogas, é muito forte. Escolhi ela por essa força, é maravilhosa.

 

Foto: Yamini Benites / Anú

 

Esse disco é muito forte mesmo. Em uma das música você canta a morte. Você costuma dizer que não gosta de falar sobre a morte, por que cantar ela agora?

Não penso na morte não. Mas é uma música muito bonita, é bonita demais, então eu vou cantar a beleza. A beleza a gente canta.

 

Dos recentes trabalhos você fez um tributo ao Lupicínio e também à Amy Winehouse, por que você escolheu esses dois músicos para prestar tributo?

Eu não escolhi, me escolheram. Eu amo o Lupicínio, adoro! Um músico que teve coragem de cantar o amor, ele canta o amor. Ele canta a liberdade, a felicidade de amar! E continua imenso, porque o amor também dói muito. E ele canta essa dor com a maior dignidade, eu adoro.

 

O que é cantar pra você?

Cantar ainda é remédio bom. Cantar é medicina pra alma. Eu gosto de cantar por isso.

 

Você fez recentemente uma cirurgia na coluna que lhe impede de sambar. Como está sendo fazer turnê com essa dificuldade?

De sambar e andar. Eu estou tranquila, a voz estando boa eu não tenho medo de nada. A garganta está limpa, então vamos com a garganta, é o que interessa.

 

Você tem um filme autobiográfico em que conta sua história, é difícil pensar no passado ou você gosta de contar suas histórias?

Eu me esqueci do passado. Eu sei que ele vive aí, mas eu quero me lembrar do hoje, do agora. Agora estou aqui falando com você, agora eu sei o que estou fazendo. Ontem já fiz. E amanhã… Sei lá.

 

Em algumas entrevistas suas você comentou que nos anos da ditadura cívil-militar você foi morar na Itália com o Garrincha. Vocês também foram exilados? Por que você foi pra Itália?

Porque fui praticamente expulsa. Eu achei um bilhete debaixo da minha porta escrito “saia em 24 horas”, eu não saí. Começou então um tiroteio terrível na minha casa, até meu segurança foi ferido. Então nós saímos.

 

Você sabe o motivo preciso das ameaças?

Não sei. Acredito que é porque eu falo muito.

 

Você chegou a sofrer muita censura durante a ditadura?

Lógico. Uma mulher que fala que nem eu falo tem que sofrer. Tem que estar na minha cabeça pra ver que eu tenho que sofrer, tenho que pagar por algumas palavras. E eu pago.

 

Foi um período muito difícil pra você?

Muito difícil! Muito. Ninguém sabe o que é ditadura. Se soubessem o que é ditadura ninguém mais usava essa palavra.

 

Você acha que em todos esses anos e todas essas entrevistas que você já deu, ficou ainda algo por perguntar?

Acho que não. Acho que já perguntaram quase tudo. E acho que eu já respondi também.

 

Então uma última pergunta sobre uma notícia bem recente, é verdade que a Mocidade Padre Miguel vai homenagear você no próximo carnaval?

Eu ouvi dizer, não posso confirmar. Mas ouvi dizer que o enredo da Mocidade seria Elza Soares.

 

Seria lindo, é sua comunidade, não? Você nasceu lá? Tem ainda uma forte relação com a comunidade de lá?

Seria! Nasci ali sim em Padre Miguel, eu sou Mocidade Independente de Padre Miguel! Adoro.

 

 

por Natascha Castro